Kennedy, o Bloco de Esquerda e um problema que afinal não é futebol: haja coragem na política!

Não havendo novidades que importem, aproveito para fazer três comentários a três assuntos que, parecendo estranhos uns aos outros, têm a coragem e a política como ponto comum.

Não há notícias. Parece que toda a nossa vida política parou por estes dias. Escrevo este texto a três dias da sua publicação, depois de o ter adiado tanto quanto podia. Tenho andado à espera de um break que finalmente me dê alguma coisa interessante sobre a qual escrever – mas a verdade é que as notícias interessantes teimam em não aparecer. Por isso, não havendo novidades que importem, aproveito para fazer três comentários a três assuntos que, parecendo estranhos uns aos outros, têm a coragem e a política como ponto comum. Aqui vai:

1.

Faz dez anos da publicação em língua portuguesa de Retratos de Coragem. O livro foi escrito por John F. Kennedy numa fase quase inicial da sua carreira política como senador e é uma obra-prima da historiografia política contemporânea. Lê-lo não é seguramente desperdício de tempo. Mas na ausência pura e simples de tempo, o que recomendo é simples: que se leia pelo menos a excelente introdução de Viriato Soromenho Marques.

O livro gravita em torno de oito figuras fundamentais da política moderna estadunidense, unidas pela capacidade de não sucumbir à pressão a que se viram sujeitas em algum momento das suas carreiras políticas. Senadores que mantiveram a nobreza de consciência em momentos de adversidade. O que Kennedy procurava era encontrar o modelo do senador perfeito, buscando inspiração para a sua própria carreira. A lista tem republicanos e democratas, federalistas e federalistas renegados, políticos eminentes e outros que não tanto. Mas o que tem, acima de tudo, é o elogio da consciência de que um servidor da coisa comum não pode deixar de se confrontar ao longo da sua carreira com a falta de popularidade, com o risco, com a difamação. Todas estas dificuldades ocorrerão. E o importante é que não se ceda ao populismo fácil, ao voto fácil, ou à justificação fácil. Ser um bom senador num país como os EUA é necessariamente custoso.

A capacidade para suportar adversidades sem alienar a própria consciência é portanto aquilo que Kennedy elogia. E isso continua a ser um elogio válido e actual: independentemente dos riscos, das ofensas ao bom nome, ou da possível perda de amigos, o que é pedido a um político dos nossos tempos é um compromisso inegociável com a sua consciência. Em Portugal, seria bom que pudéssemos ter orgulho de ser representados por políticos que, concordando connosco ou não, fossem exemplares na forma corajosa como defendem a sua consciência em matéria de impostos, de saúde, de educação. Fica o mote: leia-se o livro de JFK para buscar inspiração.

2.

O Bloco de Esquerda fez chegar ao parlamento no início de junho duas propostas legislativas que nasceram em grande medida de preocupações e sugestões apresentadas ao BE pelo Jesuit Refugee Service ~Portugal. Ambas as propostas têm em vista conseguir um alargamento da definição de “membros da família”, pensando nos problemas referentes à resposta aos pedidos de reagrupamento familiar de migrantes e refugiados. É um passo notável, que resulta quer do trabalho incansável do JRS quer do acolhimento muito favorável de José Manuel Pureza e do grupo parlamentar do BE.

Propostas legislativas como estas revelam muito sobre a coragem que Portugal tem tido de evitar discursos demagógicos em relação a temas de imigração e refugiados. Simultaneamente, revelam a possibilidade que, apesar de tudo, existe, de fazer chegar ao nosso parlamento propostas concretas sobre temas emergentes e fracturantes da nossa sociedade. Somos um país de fraca auscultação popular. Mas exemplos como este, em que um grupo parlamentar revela o desejo corajoso de pôr em prática aquilo que é apresentado por um grupo de especialistas numa área socialmente ferida, são altamente salutares. O caminho é por aqui. Falta agora apresentarem-se propostas sobre arrendamento jovem, sobre a regulação do turismo nas cidades, ou sobre a melhoria dos nossos transportes públicos urbanos. Mas o caminho é por aqui.

3.

O problema do Sporting não é neste momento um problema de futebol. E não é, muito menos ainda, um problema de clube. O problema do Sporting é um problema nacional e não percebo como é que não se tem falado mais nisso. Num país como o nosso, que valoriza a verdade, o respeito e a educação, não se pode tolerar que haja uma saga noticiosa que permanentemente exibe personagens mentirosos, desrespeitadores, boçais. Os episódios dos últimos meses passados no Sporting são o exemplo de tudo o que nós, como país, não queremos ser. E por essa razão, eleito democraticamente ou não, revogado o mandato democraticamente ou não, o que se tem passado com o Conselho Directivo do SCP não pode ter espaço para existir num país civilizado.

Creio que o mais grave de tudo o que tem acontecido ao longo dos últimos tempos pode ser resumido a isto: os nossos governantes têm sido cobardes. Não têm tido a coragem de dizer que há discursos que fomentam não o bem comum, mas o mal comum. E não têm tido a coragem de perceber como é que num país como o nosso se criam mecanismos para retirar do espaço público os discursos que incitam à violência, à desonra, segregação. A falta de coragem nomeadamente da ERC é assustadora.

É evidente que o discurso do presidente do SCP, se usasse os mesmo termos e o mesmo tom que usa, mas se referisse a questões de género ou de raça, seria imediatamente proibido – independentemente da suposta legitimidade democrática que possa ter. Assumir isto é urgente. Há certas formas de falar, há certos comportamentos, que não são admissíveis nem com todos os votos do mundo. A resignação não é uma opção. E é por essa razão que o problema não é do Sporting: é de todo o país que se deixa encantar por esta telenovela perfeitamente bárbara, sem perceber que à medida que o tempo passa se transforma cada vez mais em actor e cada vez menos em espectador.

 

 

Há poucas virtudes mais necessárias para os nossos dias do que a virtude da coragem na política. Assumir isto pode transformar a maneira como olhamos para o nosso país.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.