Jordan Peterson está na moda. Está tão na moda, aliás, que até a Portugal já veio. Mas não está na moda por causa dos sítios onde vai: está na moda pelas coisas que diz. Talvez esse seja o grande elemento revolucionário que Peterson tem trazido. Finalmente, como há muito não se via, há uma pop star intelectual que obriga as pessoas a discutir. Concorde-se com ele ou não (uma porção não irrelevante do que escreve parece-me, pessoalmente, de rigor altamente questionável…), a verdade é que é difícil ficar indiferente aos temas, à postura e aos argumentos do autor de 12 Rules for Life: An Antidote to Chaos.
O tema que catapultou Jordan Peterson para a ribalta não é novo. Resumindo tudo a poucas palavras, a obsessão de Peterson tem que ver com a liberdade de expressão – e com as ameaças que vê existirem actualmente a uma expressão que seja verdadeiramente livre. Tanto no seu livro quanto em muitas das conferências que estão disponíveis online, a postura de Peterson é simples: os limites à liberdade de expressão devem ser os mínimos possíveis. A menos que aquilo que se diz incite explicitamente a crimes raciais, por exemplo, ou a menos que aquilo que se diz distorça a realidade de tal maneira que coloque em causa a integridade física daqueles que são visados pelo discurso de alguém; a menos que uma situação como essas ocorra, todas as formas de expressão devem ser possíveis. A razão principal para esta defesa de uma liberdade de expressão quase absoluta tem que ver com o facto de ser difícil de perceber quem é que pode decidir em nome de toda a sociedade quais são as coisas que podem e quais são as coisas que não podem ser ditas. Mas o princípio é simples: a menos que o que se diz incite a comportamentos de tal forma graves que ponham a integridade de outros em perigo, então tudo pode ser dito.
Tudo deve, em princípio, pode ser dito – sob o risco de regressarmos a tempos em que alguém podia determinar autoritariamente não só o que pode ser dito, como também o que pode ser pensado. Defender a liberdade de expressão é a única forma de defender a liberdade de consciência. E isso tem que ser feito.
Não concordei sempre com Peterson. Mas percebo cada vez melhor o que diz e parece-me cada vez mais ter razão. O ódio que incita ao crime deve ser o único limite à expressão dos indivíduos numa sociedade democrática. A consequência que esta afirmação tem é a seguinte: o ódio que incita ao crime tem que ser proibido – mas a estupidez, ou a leviandade, ou o mau gosto, ou a boçalidade, ou o desacordo profundo, não têm e não podem ser proibidos. Compete à sociedade decidir aquilo que julga ser credível. Compete também à sociedade decidir aquilo que quer votar à irrelevância. Mas não compete à sociedade, tirando casos extremos como os do ódio que incita ao crime, decidir o que pode e o que não pode ser dito. Tudo deve, em princípio, poder ser dito – sob o risco de regressarmos a tempos em que alguém podia determinar autoritariamente não só o que pode ser dito, como também o que pode ser pensado. Defender a liberdade de expressão é a única forma de defender a liberdade de consciência. E isso tem que ser feito.
A razão pela qual tenho voltado a pensar no que li de Jordan Peterson vem da forma como ao longo dos últimos dias se comentou a ida de Mário Machado à TVI, bem como a polémica de Maria José Vilaça no que bem deveria ser conhecido no futuro como “Vilaça gate”. Note-se o seguinte: o discurso e a visão para o país que Mário Machado tem são para mim abjetos; e aquilo que Maria José Vilaça aparece em câmera a dizer, apesar de criminosamente gravado, são coisas nas quais não me revejo em absoluto. Mas a solução para o desacordo, incluído o desacordo profundo, que fratura profundamente as nossas identidades, consciências, ou modos de vida, não pode passar pela proibição do discurso. A solução passa por expor o ridículo, por expor a fragilidade do que é dito, por expor as consequências que uma determinada visão do mundo terá se lhe dermos crédito. Honestamente, tanto me dá que haja quem defenda e promova o creacionismo em detrimento de uma biologia evolucionária; ou que haja quem defenda e promova a não integração na Europa de migrantes que fogem de situações de conflito; ou que haja quem defenda ideologias de género contrárias à minha; ou que haja quem defenda e promova muros na fronteira dos EUA com o México, ou métodos de “trickle-down” economics, ou (…). Tirando casos de ódio que incitem ao crime, tanto me dá. Tanto dá, porque o tempo mostrará que esses não são discursos credíveis e que o futuro não pode passar por aí. A irracionalidade pode vencer durante algum tempo, mas não vencerá para sempre. E por essa razão, o que é importante é garantir que a expressão é livre, para que se possa distinguir o trigo do joio. “Pelos frutos os conhecereis”.
Vivemos tempos em que a possibilidade de discordar se torna difícil. Jordan Peterson tem razão quando diz que o paradoxo dos nossos tempos é que tudo seja permitido dizer, desde que não seja contrário àquilo que eu penso. Por essa razão, defender a liberdade de expressão não é nos nossos dias apenas uma questão de defender aquilo que se pode dizer. É uma questão de defender aquilo que se pode pensar. É uma questão de defender aquilo que como indivíduos e como sociedades um dia poderemos vir a querer ser.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.