Jordan Peterson, Mário Machado e Maria José Vilaça: a propósito da liberdade de expressão

A solução para o desacordo, incluído o desacordo profundo, que fratura profundamente as nossas identidades, consciências, ou modos de vida, não pode passar pela proibição do discurso.

Jordan Peterson está na moda. Está tão na moda, aliás, que até a Portugal já veio. Mas não está na moda por causa dos sítios onde vai: está na moda pelas coisas que diz. Talvez esse seja o grande elemento revolucionário que Peterson tem trazido. Finalmente, como há muito não se via, há uma pop star intelectual que obriga as pessoas a discutir. Concorde-se com ele ou não (uma porção não irrelevante do que escreve parece-me, pessoalmente, de rigor altamente questionável…), a verdade é que é difícil ficar indiferente aos temas, à postura e aos argumentos do autor de 12 Rules for Life: An Antidote to Chaos.

O tema que catapultou Jordan Peterson para a ribalta não é novo. Resumindo tudo a poucas palavras, a obsessão de Peterson tem que ver com a liberdade de expressão – e com as ameaças que vê existirem actualmente a uma expressão que seja verdadeiramente livre. Tanto no seu livro quanto em muitas das conferências que estão disponíveis online, a postura de Peterson é simples: os limites à liberdade de expressão devem ser os mínimos possíveis. A menos que aquilo que se diz incite explicitamente a crimes raciais, por exemplo, ou a menos que aquilo que se diz distorça a realidade de tal maneira que coloque em causa a integridade física daqueles que são visados pelo discurso de alguém; a menos que uma situação como essas ocorra, todas as formas de expressão devem ser possíveis. A razão principal para esta defesa de uma liberdade de expressão quase absoluta tem que ver com o facto de ser difícil de perceber quem é que pode decidir em nome de toda a sociedade quais são as coisas que podem e quais são as coisas que não podem ser ditas. Mas o princípio é simples: a menos que o que se diz incite a comportamentos de tal forma graves que ponham a integridade de outros em perigo, então tudo pode ser dito.

Tudo deve, em princípio, pode ser dito – sob o risco de regressarmos a tempos em que alguém podia determinar autoritariamente não só o que pode ser dito, como também o que pode ser pensado. Defender a liberdade de expressão é a única forma de defender a liberdade de consciência. E isso tem que ser feito.

Não concordei sempre com Peterson. Mas percebo cada vez melhor o que diz e parece-me cada vez mais ter razão. O ódio que incita ao crime deve ser o único limite à expressão dos indivíduos numa sociedade democrática. A consequência que esta afirmação tem é a seguinte: o ódio que incita ao crime tem que ser proibido – mas a estupidez, ou a leviandade, ou o mau gosto, ou a boçalidade, ou o desacordo profundo, não têm e não podem ser proibidos. Compete à sociedade decidir aquilo que julga ser credível. Compete também à sociedade decidir aquilo que quer votar à irrelevância. Mas não compete à sociedade, tirando casos extremos como os do ódio que incita ao crime, decidir o que pode e o que não pode ser dito. Tudo deve, em princípio, poder ser dito – sob o risco de regressarmos a tempos em que alguém podia determinar autoritariamente não só o que pode ser dito, como também o que pode ser pensado. Defender a liberdade de expressão é a única forma de defender a liberdade de consciência. E isso tem que ser feito.

A razão pela qual tenho voltado a pensar no que li de Jordan Peterson vem da forma como ao longo dos últimos dias se comentou a ida de Mário Machado à TVI, bem como a polémica de Maria José Vilaça no que bem deveria ser conhecido no futuro como “Vilaça gate”. Note-se o seguinte: o discurso e a visão para o país que Mário Machado tem são para mim abjetos; e aquilo que Maria José Vilaça aparece em câmera a dizer, apesar de criminosamente gravado, são coisas nas quais não me revejo em absoluto. Mas a solução para o desacordo, incluído o desacordo profundo, que fratura profundamente as nossas identidades, consciências, ou modos de vida, não pode passar pela proibição do discurso. A solução passa por expor o ridículo, por expor a fragilidade do que é dito, por expor as consequências que uma determinada visão do mundo terá se lhe dermos crédito. Honestamente, tanto me dá que haja quem defenda e promova o creacionismo em detrimento de uma biologia evolucionária; ou que haja quem defenda e promova a não integração na Europa de migrantes que fogem de situações de conflito; ou que haja quem defenda ideologias de género contrárias à minha; ou que haja quem defenda e promova muros na fronteira dos EUA com  o México, ou métodos de “trickle-down” economics, ou (…). Tirando casos de ódio que incitem ao crime, tanto me dá. Tanto dá, porque o tempo mostrará que esses não são discursos credíveis e que o futuro não pode passar por aí. A irracionalidade pode vencer durante algum tempo, mas não vencerá para sempre. E por essa razão, o que é importante é garantir que a expressão é livre, para que se possa distinguir o trigo do joio. “Pelos frutos os conhecereis”.

Vivemos tempos em que a possibilidade de discordar se torna difícil. Jordan Peterson tem razão quando diz que o paradoxo dos nossos tempos é que tudo seja permitido dizer, desde que não seja contrário àquilo que eu penso. Por essa razão, defender a liberdade de expressão não é nos nossos dias apenas uma questão de defender aquilo que se pode dizer. É uma questão de defender aquilo que se pode pensar. É uma questão de defender aquilo que como indivíduos e como sociedades um dia poderemos vir a querer ser.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.