Faleceu no passado 23 de agosto, aos 81 anos de idade, um dos filósofos mais influentes do nosso tempo, Jean-Luc Nancy, que nos deixa hoje uma obra imensa. Digo «imensa» não apenas porque soma cerca de uma centena de obras publicadas, mas também por se estender a domínios tão diversos que vão desde a política à psicanálise, da arte à religião, passando pela fenomenologia e a hermenêutica. Nancy soube sempre produzir pensamento assumindo a herança dos autores que o precederam e a partir da situação concreta em que se inseria. Prova disso são os seus dois últimos livros: Un trop humain vírus (2020) e Mascarons de Macron (2021), frutos das suas reflexões sobre a crise pandémica que ainda atravessamos.
Originário de Bordéus, instalou-se na capital alsaciana aos 28 anos. Foi sobretudo aí, na Universidade de Estrasburgo, que desenvolveu a sua obra e que ensinou até 2004. Começou por retomar criticamente a tradição filosófica de língua alemã, de Kant a Heidegger, passando, claro está, por Hegel e Nietzsche. E, nesse sentido, reconhece-se o seu contributo na receção dessa tradição em universo francófono. Mas a originalidade da sua obra centra-se, sobretudo, no desafio que nos deixa a (re)pensar o viver em comum para além da comunidade, ou seja, uma convivência social capaz de preservar e promover a diferença de cada uma das pessoas envolvidas.
Ao desenvolver a desconstrução das grandes narrativas pelas quais se tece a História do Ocidente, revela-se como um autor que acabou, apesar de tudo, por se manter na esteira de Nietzsche e de Heidegger, sem esquecer, claro está, o seu mestre e amigo Derrida. Até porque Nancy também procurou promover a vida concreta de um indivíduo, cujo horizonte nunca se esgota nos sistemas totalizantes que a modernidade do passado concebia como sendo absolutos. De facto, a sua abordagem recusa enclausurar o nosso horizonte de possibilidades de vida em essências pré-definidas e completamente compreendidas a priori pela razão universal. Por isso mesmo, ele acaba por ser também um filho desta época onde hoje pensamos e existimos.
Talvez seja por isso que é difícil – talvez impossível – encaixá-lo numa gaveta do armário da História da Filosofia, tal a complexidade e matiz das suas posições. Ao mesmo tempo que se opõe ao sistema capitalista vigente, que tende a reduzir a vida a uma única dimensão, a do valor mesurável pela racionalidade económica, Nancy afasta-se também do marxismo mais tradicional, demasiado confiante no progresso e no cumprimento de um suposto final definitivo e absoluto de toda a História. Se, por um lado, vivemos hoje os efeitos da globalização tecno-capitalista, incapaz de eliminar um vírus e as suas nefastas consequências, devemos desconfiar, por outro, de todo o sistema global que possa vir a apresentar-se como alternativa. E apesar de não ser praticante ou crente religioso, no sentido mais elementar dos termos, Nancy não se coíbe de falar da dimensão “espiritual” da vida, nem de elogiar as três virtudes teologais: fé, esperança e amor. São esses termos, disse Nancy numa entrevista à France Culture, que nos permitem designar tudo o que se recusa a encaixar no sistema totalizante, tudo o que não se deixa reduzir ao racionalmente compreendido. No fundo, Nancy parece não se contentar com um humanismo que, aparentemente, nos tem deixado secos por dentro. E é talvez aí que ele veja para além do seu tempo.
O cristianismo manifesta-se essencialmente como um movimento de desconstrução. E Nancy procura descrever esse mesmo processo no qual se desconstrói o Ocidente que até nós chegou e no qual existimos.
Como cristão que sou, ao abordar hoje o legado que Jean-Luc Nancy nos deixa, sinto que devo focalizar-me, sobretudo, na assim chamada «desconstrução do cristianismo». Refiro-me, mais precisamente, a duas obras fundamentais: La Déclosion (Galilée, 2005) e L’Adoration (Galilée, 2010). Nestes dois volumes vislumbramos, parece-me, o interesse que Nancy terá explorado em juventude pela teologia: um interesse que, de certa forma, se manteve sempre presente nas suas investigações e produções filosóficas.
Como é típico dos autores franceses deste período, Nancy considera a desconstrução do cristianismo no duplo genitivo. Por outras palavras, o cristianismo é ao mesmo tempo objeto e sujeito de desconstrução. O cristianismo é desconstruído na cristalização da sua metafísica e das suas instituições, mas também desconstrói a tradição ocidental que nos carateriza. O cristianismo manifesta-se essencialmente como um movimento de desconstrução. E Nancy procura descrever esse mesmo processo no qual se desconstrói o Ocidente que até nós chegou e no qual existimos.
Por um lado, encontramos no coração do cristianismo um gesto de desconstrução. Trata-se do movimento kenótico de um Deus que se faz humano. Para Nancy – que não se preocupa em respeitar a ortodoxia cristã – Deus ateiza-se na encarnação. É como se a divindade ficasse suspensa nesse movimento de despojamento total, como se Deus renunciasse ao próprio poder, à sua própria divindade. Esse Deus é, portanto, o último, não porque vem depois de todos os outros, mas porque se esvazia radicalmente da sua divindade, abandonando-nos na finitude e deixando em nós um vazio de presença. Pouco importa discutir, no plano meramente lógico-formal, a coerência deste Deus e provar a sua existência, ou inexistência, nesse mesmo horizonte abstrato e teórico. O que importa é compreender a novidade introduzida pelo cristianismo e, mais precisamente, ver como a conceção de um Deus kenótico, uno e trino desconstrói radicalmente o monoteísmo e a religião tradicionais.
Por outro lado, mais do que destruição ou eliminação total do cristianismo, a desconstrução de Nancy revela, sobretudo, a incapacidade dos grandes sistemas em criarem hoje sentido para as nossas vidas. É como se o cristianismo desconstruísse, e se desconstruísse, ao ponto de esgotar todos os absolutos. De facto, já presente na génese do cristianismo, a «morte de Deus» também se torna num evento do Ocidente hodierno. Ou seja, a «morte de Deus» não se reduz à afirmação teológica de um Deus que se desfaz na finitude humana. Significa, para além disso, o caminho que o Ocidente percorreu até hoje, num mundo onde nem o próprio cristianismo se mostra capaz de conferir um sentido absoluto para a experiência humana coletiva, pois a vida em comum, a convivência social, a organização da sociedade, já não podem ser moldadas por um sistema assumidamente cristão. A «morte de Deus» situa-nos, portanto, no horizonte da pura imanência, onde o sentido é criado por um sujeito capaz de assumir a precariedade da sua condição. O que nos resta, então, depois da desconstrução? Talvez a responsabilidade de criar sentido a partir dessa imanência frágil, pois, o sentido nunca se cristaliza, nem pode ser engendrado no seio de um sistema que tenha a pretensão de o abarcar plena e definitivamente.
Podemos perguntar-nos: o que pode um cristão do século XXI aprender e aprofundar a partir do legado que Nancy nos deixa (não obstante a sua heterodoxia)? Talvez a desconstrução que ele descreve nos possa ajudar a assumir o cristianismo como um processo histórico. Com efeito, o cristianismo não se reduz ao Jesus histórico que pisou este mundo há dois mil anos, nem mesmo aos apóstolos e aos textos elaborados durante esse período. Então, se o cristianismo é um processo que nos constitui, do qual fazemos parte, e no qual somos protagonistas, devemos evitar cristalizá-lo numa ideologia ou numa instituição que se arrogue a si o direito de ser imune ao tempo e a qualquer tipo de mudança. Além disso, convém que a dinâmica kenótica nos ponha sempre em causa, sobretudo na forma como detemos e exercemos poder neste mundo. A kénosis de Deus pode sempre estimular a reforma da Igreja, tanto ao nível individual como no âmbito das suas estruturas institucionais e dos seus sistemas teológicos.
Fotografia de: Georges Seguin (Okki)
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.