Talvez esperançado pela proximidade do descanso estival, dou por mim a rememorar o desabafo atribuído a Alexandre Herculano: «Isto dá vontade de morrer!». Isto era Portugal; um certo Portugal pantanoso e torpe, propício a videirinhos e onde medrava a mediocridade e o escândalo. Quase 150 anos após a morte do velho liberal mudaram-se os tempos, mas a vontade permanece.
1. Em passo de corrida, o Governo Português apresentou em Bruxelas o seu Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) – um nome pateta – com o nobre propósito de receber mais de dezasseis mil milhões de euros. A pressa compensou. O PRR português foi o primeiro a ser aprovado. Enquanto recebia a sanção da senhora Von der Leyen, o Primeiro-Ministro questionou a germânica se já podia ir ao banco. A cena, triste e pouco digna, de tão repetida já não espanta ninguém. O primeiro pedinte da fila dos desafortunados não mostrou circunspecção. O contentamento era genuíno. Desconfio que a presidente da Comissão Europeia desconhece estar a alimentar uma nação onde a habitual prodigalidade exige com frequência a tutela estrangeira para evitar perdições fatais.
Enquanto o dinheiro não chega, Costa vai anunciando que uma vez nos cofres pátrios a economia vai enrobustecer, o clima vai ser tratado como nunca e Portugal finalmente cumprirá o seu potencial (qual seja, não esclareceu). Ninguém será deixado para trás. Proclamações que fazem lembrar fantasias de café com a sorte no euromilhões ou o súbito falecimento de uma tia rica. Desta é que é. Ou talvez não.
Ninguém será deixado para trás. Proclamações que fazem lembrar fantasias de café com a sorte no euromilhões ou o súbito falecimento de uma tia rica. Desta é que é. Ou talvez não.
2. O município de Lisboa decidiu diligentemente enviar dados pessoais de activistas russos, que organizaram uma manifestação contra o Sr. Putin, às autoridades chefiadas… pelo Sr. Putin. Um erro burocrático, alega-se. Os “denunciados” afirmaram ter medo. E bem se percebe. Por estas bandas a burocracia gera úlceras e atrapalha a vida dos cidadãos; em Moscovo a burocracia pode causar a morte. E terá sido talvez a este destino que algumas daquelas pessoas ou seus familiares foram condenadas.
A pesquisa ao histórico de erros burocráticos revelou que o município lisboeta já repetira a façanha em anos e manifestações anteriores. Perante os sucessivos pedidos de explicações, o edil veio compungido dizer que assumia a responsabilidade pelo sucedido. Na prática, ficámos a saber que a assunção de responsabilidades políticas do Dr. Medina consiste em repetir que assume a responsabilidade e, para apaziguar a turba, em exonerar um desgraçado funcionário municipal – o alegado responsável subjectivo pelas violações dos direitos dos manifestantes.
Num país decente, a responsabilização política – a enfâse é em política – traduzir-se-ia numa imediata demissão de funções públicas, seguida por um retiro para a província. Em Lisboa, o Dr. Medina assumiu as responsabilidades, donde manteve-se no cargo e afadiga-se na campanha para as próximas eleições a presidente do município. A atender nas sondagens, aos habitantes da capital não desagrada o chefe incumbente. Um retrato feliz.
Num país decente, a responsabilização política – a enfâse é em política – traduzir-se-ia numa imediata demissão de funções públicas, seguida por um retiro para a província.
3. É consensual entre os politólogos – e a quem detenha um módico de senso comum – que o funcionamento saudável de uma democracia exige uma oposição política. Confesso que procurei com o afinco exigível a um preguiçoso, mas não a encontrei. Em teoria existem partidos de oposição. Oposição ao governo e ao rumo que este decidiu para o país é que não.
A direita transformou-se num sortido de personalidades que vão desde émulos do Primeiro-Ministro até a aventureiros primitivos, passando por, juro, um chefe de uma associação de estudantes que por lapso preside a um partido que ninguém entende. Se a composição é variegada, e até divertida, falta uma política ou um rumo alternativo para oferecer ao povo. O que se aconselhava.
À esquerda encena-se algum descontentamento que não convence ninguém. Certamente destinado a obter vitórias no próximo Orçamento do Estado. Entre partidos anacrónicos, ficções políticas assentes em wishful thinking e membros não inscritos à solta no hemiciclo, o que prevalece é o medo da direita. Entende-se. Para mal já basta assim.
À esquerda encena-se algum descontentamento que não convence ninguém. Certamente destinado a obter vitórias no próximo Orçamento do Estado.
4. 2021. O ano marca os 60 anos do início da Guerra Colonial. Infelizmente pouco ou nada de útil tem sido feito para entender o que foi aquele conflito e o impacto que teve nos portugueses. Nos que combateram, nos que ficaram e nos que se encontravam nas, então, províncias ultramarinas e tiveram de fugir para Portugal em desespero.
Sou filho da geração que foi enviada para combater em África. Muitos deles pouco mais do que crianças, arrancados ao atraso e miséria das berças, sem qualquer consciência política ou ideia por que iam combater para um outro continente que nada lhes dizia. Sem ter lá estado, a imaginação não é bastante para compreender o horror e o medonho da guerra, tanto maiores quanto mais frágeis eram os rapazes que para lá foram enviados.
Após o regresso eram ex-combatentes de uma guerra velha – de um outro regime que se queria esquecer. E por decorrência, também eles se procuraram esquecer. Não se cuidou, como era digno e merecido, dos estropiados de guerra, dos traumatizados; negligenciaram-se as feridas internas dos que voltaram e as consequências nas respectivas famílias e trabalhos. Esqueceu-se durante demasiado tempo que foram homens enviados para combater por Portugal e não por um regime. Portugal não foi digno deles.
O destino romântico de Herculano permitiu-lhe o refúgio bucólico em Vale de Lobos, enquanto a sua desilusão crescia até ao desespero. A nós resta-nos beber o cálice até ao fim, e murmurar a frase do velho liberal. Não mudamos nada.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.