Imagine. E se o mundo tivesse mudado nestes meses de confinamento?

Aprendemos muito nestes meses. Que podemos trabalhar a partir de casa, que a telescola do passado era, afinal, do futuro, que quando paramos de a atormentar, a natureza volta e reocupa o seu espaço. Um mundo melhor é possível.

Passaram quase seis meses do anúncio, na China, de duas dezenas de casos de uma pneumonia de origem desconhecida detetados na cidade chinesa de Wuhan, na província de Hubei. A cronologia dos acontecimentos desde 31 de dezembro está ainda muito presente nos nossos espíritos. Vivemos as notícias de longe, em janeiro e fevereiro. O problema não era ainda nosso e a distância separava. Depois, ao ritmo das viagens de cada um, foi ficando mais perto, até ser mesmo aqui. Não pudemos ir para nenhures nem para Pasárgada. Ficámos aqui. Mas muitos saíram, migraram para a eternidade. Os que partiram fazem-nos ainda uma falta maior: aquela que só se preenche com a palavra saudade. São muitos, são muitas.

Descobrimos um mundo novo dentro de casa e como são fortes os elos que nos unem aos que partilham a nossa vida, as nossas vidas. Olhámos o mundo por um ecrã, seguimos a vida lá fora por uma janela. Compreendemos agora melhor a desigualdade de quem nada tem, nem um ecrã, nem uma casa, nem alguém com quem partilhar laços fortes. Em Itália, em Espanha, no Brasil, irmãos nossos de cultura e sentir, encontrámos realidades tão próximas que podiam ser aqui. Ficámos mais apreensivos porque podia ser aqui. Ficámos voluntariamente em casa porque podia ser aqui. Era aqui.

O capitalismo, qual mão invisível acenando à janela (não sei se a mão comprometida de Adam Smith ou a mão aberta de Keynes), impôs-nos o fim da clausura com a ameaça do caos e da penúria. O dinheiro sem circular esvazia-se de sentido, torna-se desnecessário, ameaça os que tudo têm. Navegar é preciso. Avançar até à loja, ao shopping, ao restaurante, ao banco como vacina para a crise que já se anuncia. Revertemos a situação de confinamento, talvez demasiado cedo? Talvez demais? Não compreendemos que a aproximação social não era o oposto do distanciamento físico? Talvez porque o que seja mesmo necessário seja a continuação de um afastamento físico que evite as gotículas microscópicas onde se esconde o SARS-CoV-2. Pode ser a distância de um abraço (com máscara) ou de um espirro mais forte. Desconfinar é preciso porque viver é preciso.

Sentimos que a economia é presente efémero, que o turismo não é primeira necessidade e que na linha da frente está o que lá esteve sempre: a paz, o pão, habitação, saúde, educação.

Entretanto, com melhorias aqui, o vírus continua a avançar no inverso sentido da rotação da terra. Viaja boca a boca e, rapidamente, pelo mundo fora nos mascaramos para o tentar parar. Pelo ecrã chegam políticos, especialistas e comentadores e inverosímeis histórias de políticos graúdos que negam as evidências científicas e desvalorizam a maior crise de saúde pública (e social) da história da humanidade que hoje somos. Percebemos que o Estado Social, de Bem Estar, afinal não é universal, longe disso e que há, pelo mundo fora, mas também aqui, quem sofra no corpo e no espírito o efeito Mateus na sua plenitude: “Porque dar-se-á àquele que já tem e terá ainda mais; mas para aquele que não tem, tirar-se-lhe-á até o que tem” (Mateus 13: 12). Se a quem já nada tem retirarmos tudo o resto fica um vazio em nós? Penso nos jovens, penso nos velhos, penso nos imigrantes, penso nos socialmente excluídos. Descobrimos, nos outros, desigualdades sociais que pressentimos (também) por aqui. Desigualdades económicas que também ocorrem aqui. Desigualdades raciais e étnicas que também vivemos aqui. Sentimos que a economia é presente efémero, que o turismo não é primeira necessidade e que na linha da frente está o que lá esteve sempre: a paz, o pão, habitação, saúde, educação.

Aprendemos muito nestes meses. Que podemos trabalhar a partir de casa, que podemos ter reuniões sem coffee-break. Que a telescola do passado era, afinal, do futuro. Que o teletrabalho tem riscos sociais e económicos e não acaba com (antes pode reforçar) a precariedade ou a exploração laboral. Que quando paramos de a atormentar, a natureza volta e reocupa o seu espaço. Podíamos, se quiséssemos viver sem poluição, com menos stress, com mais vida em qualidade. Um mundo melhor é possível. Yes we can! Temos que mudar muita coisa. Comecemos, talvez, por mudar a base capitalista das desigualdades sociais: a fiscalidade global.

Quem beneficia da globalização tem que pagar mais impostos (um bom exemplo pode vir de uma Taxa Tobin ou Imposto sobre Transações Financeiras universal). Se o capitalismo financeiro é a base da grande desigualdade social atual é sobre ele que devemos incidir para uma solução. Para que alguns acumulem riquezas incomensuráveis há muitos que vivem na penúria total, que vivem (até) sem esperança. A evasão fiscal corporativa tem que acabar através da criação de um regime global de tributação das multinacionais capaz de gerar recursos financeiros de apoio à paz, ao pão, à habitação, à saúde e à educação. Estes recursos financeiros devem estar ao serviço do multilateralismo e ser de usufruto global. O direito a migrar é (hoje como no passado) um direito humano fundamental. O direito à informação é um emergente direito universal. Os 10 princípios da Declaração dos Direitos da Criança são inegociáveis e de aplicação obrigatória universal. Se todos nascemos livres e iguais, os direitos humanos têm que ser exercidos globalmente, sem exceções, incluindo, talvez acima de tudo, o direito à Educação. Garantir a Educação é o outro lado da moeda de uma fiscalidade justa e equitativa. Todos temos que contribuir para esse condomínio comum cumprindo a Hipótese de Gaia. Não há planeta B, não há humanidade B.

Seis meses depois do início da mudança ainda não mudámos muito. Aprendemos, porém, que é possível mudar. Imagine. E, se agora, eu disser que um mundo melhor só depende de cada um de nós. Pois. Já sabia. Já sabíamos. Agora só falta um passo. O primeiro. O pequeno passo de cada um de nós em direção ao futuro começa hoje. Fico por aqui?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.