Ideias para debaixo da árvore: As Três Mortes de Lucas Andrade

Este é um romance que obriga a uma leitura pessoal, relacional e ativa. Personagens que interpelam e surpreendem; uma história que perturba e desafia.

Ainda antes da sua publicação, foi a capa que me convenceu a ler As Três Mortes de Lucas Andrade. A misteriosa sinopse revelava que o romance faria a intersecção de muitas das minhas áreas de interesse: a morte, o suicídio, a pobreza.

A escrita, irrepreensível, é eclipsada pela riqueza da narrativa. Cada personagem encerra um mundo em si mesma: imprevisíveis, cheias de segredos, ambiguidades, falhas e arrependimentos, apaixonantemente humanas, suscitando oscilações dramáticas nos afetos de quem lê, entre o amor, a raiva, o desprezo e o ódio, sentimentos desde logo despoletados pelo (anti-)herói. Constrói-se uma relação pessoal com cada uma das “vidas” do protagonista, que correm separadamente nos quatro livros que compõem a obra (João Miguel, Ruço e Lucas Andrade, terminando com Rute).

Volvidos mês e meio sobre a sua leitura, o João Miguel ainda não me saiu da cabeça. Penso muitas vezes nele. Ao adormecer, revisito o frio da serra onde nasceu, a frescura da água que dali corria para matar a sede em Lisboa, a crueldade da sua Avó, o quarto escuro da cave do Janeirinho onde morava com os pais. Penso nos golpes desferidos pela mãe arbitrariamente, no terror que lhe causavam os olhos esmeralda de David na esquina da sua rua, no ansiado colo que encontra na Avó-de-coração Judite. Penso em João Miguel e no seu crescimento forçado num mundo que lhe doía e o fazia sofrer, um contexto permanentemente em choque com a sua enorme sensibilidade.

Penso em João Miguel e no seu crescimento forçado num mundo que lhe doía e o fazia sofrer, um contexto permanentemente em choque com a sua enorme sensibilidade.

Se João Miguel é adorável, com Ruço morre a pouca inocência que tinha. Isto faz com que cada desventura que testemunhamos — do crescendo, ao negro clímax, ao torpor que se sucede — seja ainda mais difícil de engolir. Através de Ruço conheci melhor tantos amigos meus nascidos na periferia, nas franjas da área metropolitana, entre classes sociais mutáveis, que participam plenamente dos meios em que me movo, mas que testemunharam a pobreza e criminalidade suburbanas de formas que não conheci. Nascida de uma família de mulheres, tive uma janela para vislumbrar o que pode ser a experiência de um rapaz adolescente. E revi nas dores de Ruço a minha luta de género, que também oprime e castra homens que fujam aos ditames da masculinidade tóxica.

Já a minha relação com Lucas Andrade foi mais difícil. Por ser sobrevivente do suicídio, tenho uma leitura própria sobre os problemas de saúde mental que choca muitas vezes com a narrativa e as opiniões do narrador. Também não consigo perdoar Lucas pelo seu derrotismo, pelo seu egocentrismo, pelo seu narcisismo tosco, que é o meu e o de tantos suicidas. Encontro nos seus raciocínios desviantes os pensamentos insidiosos que já tive, e cuja lógica não consigo enquadrar senão na patologia própria da doença mental. E é aqui que o narrador nos convida a viver o desconforto da autodeterminação empática e radical: rejeitarmos a condenação puritana e ignorante dos suicidas enquanto os derradeiros pecadores, sem, contudo, nos entregarmos ao relativismo moral determinista, que nos é oferecido em alternativa pelas sensibilidades woke contemporâneas. Nas Três Mortes de Lucas Andrade, mesmo debaixo da enxurrada do desespero, encontramos sempre liberdade e agência para fazer escolhas morais.

Para além de Lucas, o livro é rico nas suas personagens secundárias. Podia ficar horas a falar-vos sobre a francesa, que merece uma sequela própria, ou a matriarca Judite. Podia explicar porque David é a minha personagem preferida, e aquela cujo desfecho me deixou mais destroçada. Ou mesmo porque não gosto (mesmo nada) da Joana. Mas convido-vos a descobri-los por vocês mesmos.

Desde o início da leitura que As Três Mortes de Lucas Andrade me lembraram de A Little Life de Hanya Yanagihara, que lera no início do ano. Sem ser uma epopeia pornográfica do sofrimento imaginado, como na “pequena vida” do protagonista de Yanagihara, Jude St Francis, cada “morte” de Lucas Andrade consegue desferir golpes tão ou mais duros pela sua crueza, pela realidade, pela proximidade, pelo que o narrador insinua e nos deixa imaginar. Provecto em violência, também violência sexual e abusos de menores, também não é um livro que nos deixe dormir descansados. Tal como em A Little Life, o sofrimento abjeto do protagonista torna-se ainda mais intolerável pelas doses (quase!) salvíficas de compaixão e bondade que outros intervenientes dispensam. Esta oposição entre bem e mal absolutos reforça o tom onírico que permeia todo o livro, seja pela voz do narrador omnisciente, presciente e possivelmente póstumo, seja pelo número e intensidade de aventuras e desventuras vividas por Lucas e seus companheiros.

Este é um romance que obriga a uma leitura pessoal, relacional e ativa. Personagens que interpelam e surpreendem; uma história que perturba e desafia. Marcou-me e vou levá-lo comigo durante muito tempo. Detenho-me em várias nuances que ele oferece: na diferença entre pobreza e miséria, sempre à espreita na Serra e no Janeirinho, na banalidade do mal que não pode nunca consumir o livre arbítrio, e como em cada um de nós habitam enormes contradições. Sem fazer spoilers, o livro tem um final aberto, que só por si merece várias reflexões.

Com As Três Mortes de Lucas Andrade Henrique Raposo apresenta-se como um dos possíveis grandes romancistas portugueses da nossa geração. Não será um livro para todas as audiências: desconfio que possa ser “lost in translation” por ser tão português. Duvido ainda que seja para o gosto de todos os leitores; na cultura do imediato, um livro de 600 páginas desanima muitos, e um livro sobre temas tão pesados é dissuasor de outros tantos. Mas é um excelente presente de Natal para amigos e familiares sem medo de ler e refletir sobre temas difíceis, cujas almas queiram inquietar.

 

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.