Hong Kong entre a liberdade e o desespero

Quem vai ajudar Hong Kong? Para quem sente a liberdade a fugir debaixo dos seus pés é, infelizmente, uma pergunta sem resposta.

Nas últimas semanas temos assistido a muitas imagens, discursos e reacções extraordinárias. Não falo de Trump e dos seus comentários racistas nem da verve de Boris Johnson. Refiro-me a uma boa parte dos habitantes de Hong Kong. Há desde logo uma imagem inesquecível: a de manifestantes pacíficos a serem agredidos por bandos perante a impassividade da polícia de Hong Kong. No fundo, um dos grandes legados da administração britânica, o Estado de Direito (em inglês «rule of law») parece ter sido definitivamente abandonado. Neste território de cerca de 7 milhões e 200 mil pessoas, que foi devolvido à China em 1997, há muito que nos deve preocupar e a que devemos estar atentos.

Há várias leituras que podemos fazer dos protestos, das respostas, da violência, da contra-resposta violenta de alguns, e da espiral de palavras e atos a que temos assistido. Para mim há três em especial. Em primeiro lugar, uma conclusão óbvia. A ideia subjacente à reintegração de Hong Kong na China, «Um País, Dois Sistemas», que inclui um período de vigência da Lei Básica e do compromisso assumido em matéria de direitos e liberdades durante 50 anos com os britânicos (termina em 2047), está morta e enterrada.

Tudo o que tem acontecido neste território é revelador de como Beijing não vai esperar calma e pacientemente por 2047. Os casos sucedem-se e há muito por onde escolher. Eu destacaria o que aconteceu aos editores e livreiros que têm a «ousadia» de publicar e vender livros «incómodos». O seu desaparecimento e alguns dos seus testemunhos e «confissões» falam por si. A proposta de uma lei de extradição foi a gota de água de um processo gradual de «erosão» das liberdades (como tem escrito a Freedom House sobre as democracias no mundo) que teve o seu momento mais forte e mediático no Movimento dos Guarda-Chuvas Amarelos de 2014.

A ideia subjacente à reintegração de Hong Kong na China, «Um País, Dois Sistemas», que inclui um período de vigência da Lei Básica e do compromisso assumido em matéria de direitos e liberdades durante 50 anos com os britânicos (termina em 2047), está morta e enterrada.

A segunda leitura está relacionada com Taiwan, um território com cerca de 23 milhões e 500 mil habitantes. Para a liderança em Beijing o «regresso» de Taiwan é o corolário da ideia «Um País, Dois Sistemas». Mas não só os taiwaneses têm uma democracia liberal plena, ou seja, muito mais desenvolvida e madura do que Hong Kong e Macau, que são considerados semi-livres pela Freedom House, como o tempo não é amigo da China. Quanto mais jovem a população menos identificação existe com aqueles que vieram em 1949 fugidos dos comunistas de Mao Zedong.

Os acontecimentos em Hong Kong têm vindo a reforçar o receio de que uma eventual reunificação trará consigo o «peso» da ditadura chinesa. Esta questão será crucial nas eleições presidenciais que terão lugar em Taiwan no início de 2020, mas já teve o seu impacto. A actual Presidente Tsai Ing-wen (do DPP que é mais critico da China) solidificou a sua candidatura para a reeleição a começar com os outros rivais dentro do seu partido. Vai ser uma disputa interessante com o candidato do Kuomintang, que é o outro grande partido e mais pró-China. Eu diria que quanto mais a China «carregar» em Hong Kong mais o DPP ganha votos em Taiwan.

Por último, devo dizer que Hong Kong é um de muitos casos em que a actual deriva das democracias liberais é especialmente penalizadora. Dito de outra forma, o alheamento de Washington e, de certa forma, da própria UE virada para os seus desafios internos tem consequências graves na defesa e na promoção da liberdade no mundo. Muitos dos jovens de Hong Kong pedem ajuda externa e vão sentindo um desespero crescente perante a «erosão de liberdade» a que assistem no seu dia-a-dia.

Muitos dos jovens de Hong Kong pedem ajuda externa e vão sentindo um desespero crescente perante a «erosão de liberdade» a que assistem no seu dia-a-dia.

Mesmo olhando para o Reino Unido e tendo em conta os comentários de Boris Johnson diria (embora tudo possa mudar a qualquer momento) que não será Londres a fazer valer o «Estado de Direito». Não só porque já não tem poder para isso como a relação com a China, enquadrada no processo de Brexit, será ainda mais importante para os britânicos. Os chineses sabem isso perfeitamente e vão dando sinais importantes. Por exemplo, o obituário de Li Peng, conhecido como o «Carniceiro de Tiananmen», foi especialmente laudatório e elogioso. A mensagem é clara. Passando um certo limite a China será intransigente. É óbvio que Xi Jinping não quer uma espécie de repetição de 1989. mas se for colocado entre a espada e a parede, a primeira irá prevalecer.

Quem vai ajudar Hong Kong? Para quem sente a liberdade a fugir debaixo dos seus pés é, infelizmente, uma pergunta sem resposta.

E ainda mais dolorosa quando quem não pode escolher todos os seus representantes, como em Hong Kong, vê com perplexidade muitos cidadãos em democracias liberais plenas como a nossa a não exercerem o seu direito de voto.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.