Esta história pretende mostrar o papel chave do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, um documento de referência para a organização de todo o sistema educativo, contribuindo para a convergência e a articulação das decisões inerentes às várias dimensões do desenvolvimento curricular. Outros documentos de referência são as Aprendizagens Essenciais, necessários para que a organização dos processos de aprender em cada disciplina seja orientada para o desenvolvimento das áreas de competência do Perfil e para a avaliação da qualidade dos processos e dos resultados.
No tempo atual, de pouco serve aprender Matemática ou outra disciplina de forma descontextualizada, apenas como exercício de conhecimento teórico, afastado do seu uso na compreensão dos fenómenos sociais, culturais e pessoais. Para que serve aprender uma língua e não a usar na comunicação, na interpretação, na expressão de ideias e de sentimentos? Para que serve aprender História e não usar esse conhecimento para compreender de que modo o passado determinou (positiva e negativamente) a qualidade de vida das pessoas, influenciando o presente e o futuro? É desta relação entre o conhecimento específico das disciplinas, as vivências de cada uma das crianças e jovens que estudam e a realidade em que se integram no dia a dia, que surgem as aprendizagens que, por serem úteis e utilizáveis, tornam esses alunos competentes enquanto cidadãos.
Para que serve aprender uma língua e não a usar na comunicação, na interpretação, na expressão de ideias e de sentimentos? Para que serve aprender História e não usar esse conhecimento para compreender de que modo o passado determinou (positiva e negativamente) a qualidade de vida das pessoas, influenciando o presente e o futuro?
Este artigo vem no seguimento da primeira parte do projeto “Se esta rua fosse minha…”, desenvolvido por uma turma do 6.º ano de escolaridade de uma escola pública no norte do país, vinte e três alunos entre os onze e os treze anos de quatro nacionalidades: portuguesa, brasileira, ucraniana e angolana, alguns acabados de chegar a Portugal, ainda no início do processo de integração. Entre eles, também, alunos de etnia cigana. Um grupo diverso com experiências de vida muito variadas, interesses diferentes, formas diferenciadas de aprender, mas uma relação de amizade já bastante forte. A maioria dos alunos morando em ruas pertencentes a bairros sociais com população numerosa.
Já tendo sido identificadas as ruas e os princípios e valores que sustentavam o trabalho a desenvolver, passou-se à fase seguinte: desenhar o plano de visitas de estudo e a contribuição de cada disciplina para o desenvolvimento do projeto, promovendo as aprendizagens que permitissem o olhar informado sobre os problemas e as hipóteses de resolução. Debateram-se questões básicas: Porque vamos conhecer as ruas? Porque vai ser importante para nós conhecer as ruas? Como as disciplinas nos vão ajudar a conhecer melhor as nossas ruas?
Os alunos procuraram o apoio dos professores. Eles já tinham as suas ideias iniciais, queriam mostrar o local onde viviam, partilhar alguns aspetos dos seus dias, onde brincavam, as pessoas que conheciam e melhorar o que fosse possível. Mas os professores tinham programas a cumprir com conteúdos específicos a aprender e só eles poderiam decidir se as suas disciplinas poderiam participar no projeto. Como se sabe, os programas são extensos e o tempo torna-se escasso para que todas as abordagens se transformem em aprendizagens efetivas. É verdade que o trabalho colaborativo entre disciplinas permite uma melhor gestão do tempo por se partilharem métodos, recursos, formas de monitorização e avaliação da aprendizagem. No entanto, se o professor se deixar entusiasmar pelos alunos, pode fugir para caminhos que se distanciam do programado. É neste dilema que os professores vivem quando desenvolvem projetos e se articulam disciplinas – o que é preciso ensinar, o que os alunos querem aprender. Só um especialista do ensinar, como o professor é, consegue fazer essa gestão de forma harmoniosa.
Foi assim que, de sugestão em sugestão, com o apoio de todas as disciplinas, se definiram os objetivos para o projeto: conhecer as ruas para identificar como promoviam a vida saudável dos seus moradores e descobrir como preservar e melhorar o ambiente do local onde se vivia.
A partir desta decisão foi fácil definir as questões do projeto:
– A nossa rua é promotora da saúde?
– Há qualidade ambiental na nossa rua?
– É amiga das crianças?
– Como melhorar o nosso ambiente?
Os alunos gostaram muito da ideia de compreenderem se as ruas eram amigas das crianças. O levantamento de ideias sobre as qualidades de uma rua para que seja amiga das crianças foi muito animado, com todos a quererem dar opiniões, mostrarem o conhecimento já adquirido e a sua opinião baseada em vivências.
Dois alunos já tinham sofrido atropelamentos e por isso referiram a importância da existência de passadeiras. No entanto, porque existiam sempre pessoas que conduziam os seus carros como se estivessem sozinhos no mundo, sugeriram a colocação de semáforos e sinais sonoros, o que implicou assinalar nos mapas os locais onde existiam já os vários dispositivos e onde deveriam ser colocados novos. Estas ideias fizeram-nos identificar os responsáveis por cada uma das entidades que protegia a criança: os próprios moradores, as suas associações e as estruturas autárquicas. As aulas de Cidadania e Comunicação foram essenciais até porque implicaram a visita a uma junta de freguesia, o que abriu a possibilidade da entrega de um documento ao Presidente que apresentasse as propostas dos alunos para a melhoria das ruas.
Tornou-se importante conhecer as opiniões de outros moradores e decidiram fazer um questionário e aplicá-lo. Como, na disciplina de Ciências, já estavam a estudar as condições para promover a saúde, compreendendo a morfologia e a fisiologia dos sistemas vitais e as regras para os manter saudáveis, não foi difícil decidir algumas das categorias para a organização das questões. Em matemática, aprenderam as noções básicas de estatística para saberem como obter dados que pudessem ser organizados e interpretados e, na disciplina de português, construíram o questionário. Como sabiam que existiam ingleses a viver numa das ruas, traduziram o questionário para Inglês e treinaram a leitura e o registo de várias respostas possíveis. Por causa da dificuldade em compreenderem e registarem as respostas em Inglês sugeriram gravar as entrevistas usando os telemóveis, o que foi aprovado por todos. Foi também na disciplina de Português que treinaram a apresentação e a explicação para a aplicação do questionário, primeiro entre eles, depois com pessoas na escola, funcionários, outros professores e colegas. Quando se sentiram seguros, em grupos de três, armados com as folhas dos questionários, lápis afiados e telemóveis carregados, saíram da escola. Cada grupo foi acompanhado por um estagiário do Mestrado de Educação da Universidade do Minho, decisão tomada para que todos os grupos fossem acompanhados por um adulto para a gestão de imprevistos. A experiência de fazer entrevistas a pessoas das ruas – umas conhecidas, outras não – foi uma aventura. As primeiras entrevistas foram tímidas mas, depois, já nada os detinha. Nos dias seguintes, escreveram os seus relatórios, aprenderam a trabalhar com o programa Excel para a organização, tratamento dos dados e construção dos gráficos. Utilizaram as aulas de Português, Matemática, Cidadania, Tecnologia, Ciências Naturais e Inglês. Foi muito animado, mas também muito cansativo. Implicou a aprendizagem de muitos conteúdos e procedimentos que só ganhavam sentido num uso competente. Também lhes permitiu comparar as suas ideias com as pessoas que entrevistaram. Existiam muitas coincidências, mas surgiram algumas ideias novas como a ausência de condições para os deficientes motores, o policiamento insuficiente durante a noite e a falta de cuidado de alguns moradores com o depósito dos lixos, nomeadamente com a sua separação. Agora já tinham dados suficientes e muito mais seguros para entregarem ao Presidente da Junta de Freguesia.
Por esta história se vê a articulação entre disciplinas para que os alunos desenvolvessem um olhar crítico sobre a realidade e encontrassem formas de a melhorar. Também se compreende como o projeto se torna mais complexo e como a responsabilidade dos alunos – e dos professores – vai aumentando. E ainda há mais para contar…
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.