Muito se fala da escola, do que ensina, do que se aprende. Há inúmeros estudos que apresentam, descrevem, explicam, justificam os processos e os resultados do ensino e da aprendizagem à luz de quadros teóricos diversos. Eu também vou falar da escola. Vou contar histórias reais sobre as pessoas que aprendem e as que ensinam na sua relação com um conhecimento sustentado no desenvolvimento da cidadania. Vou contar do interior da escola, das salas de aula, dos corredores e dos recreios. Vou tentar mostrar a emoção do aprender e do ensinar, o entusiasmo e a expectativa, mas também o reformular, para que o sonhado se adeque ao possível.
Esta história pretende mostrar que a cidadania é o núcleo central da aprendizagem desde que se criem condições para que se experiencie e se reflita sobre a igualdade nas relações interpessoais, a integração da diferença, o respeito pelos Direitos Humanos, a promoção da saúde e do ambiente. Acredita-se que uma estratégia de educação para a cidadania passa, obrigatoriamente, pela relação intrínseca entre o que se aprende em cada disciplina do currículo e a reflexão sobre os acontecimentos, as causas e os efeitos da ação humana, o impacto das suas decisões. Acredita-se também que todas as disciplinas têm de encontrar um compromisso na construção de uma visão global do mundo, uma visão humanista que considere a sociedade centrada na pessoa e na sua dignidade.
E aqui começa a primeira parte desta história.
Um dia, logo no início do ano letivo, senti algum alvoroço na sala:
– Então que entusiasmo é esse?
– Descobrimos, na aula de História, que os nomes das nossas ruas correspondem a pessoas que ficaram famosas por alguma coisa que fizeram na cidade ou no país. Então, estamos a falar sobre os nomes das nossas ruas e a tentar compreendê-los.
Fiz-lhes uma proposta:
– Querem apresentar-nos as vossas ruas? Cada rua, uma visita de estudo em que o guia é o aluno que lá vive?
Foi assim que começou um projeto de trabalho que durou um ano escolar. Começou simples e terminou, porque teve de terminar, no final do ano letivo, como um polvo, cheio de tentáculos apoiados nas diversas disciplinas, mas com uma cabeça centrada na cidadania e nos problemas sociais.
O nome do projeto surgiu naturalmente. Um aluno disse: “Se esta rua fosse minha tinha muito mais árvores e relva, um lugar para passear os nossos cães e locais onde pudessem beber água limpa!”. Todos quiseram também expressar a sua opinião e, assim, fizeram cartazes a partir do mote “se esta rua fosse minha”, mostrando o conhecimento que tinham sobre o local onde viviam e o que gostavam que fosse melhorado. Durante esta tarefa, em pequenos grupos, pesquisaram os nomes das suas ruas e organizaram a informação e as ideias que apresentaram aos colegas e professores. Definiram critérios para a construção dos cartazes e para a comunicação. Foi uma tarefa valorizada pelo trabalho em grupo que permitiu a troca de ideias, o planeamento da ação e a divisão de tarefas.
Durante a comunicação tiveram o cuidado de não apresentar apenas uma visão pessimista do lugar referindo, também, o que não queriam que fosse alterado. Do que deveria ser melhorado indicaram a falta de higiene, o trânsito e a existência de poucos locais seguros para brincar e jogar. Quanto ao que valorizavam, identificaram os campos de jogos, os jardins e as pessoas, os seus vizinhos. Referiram muito as pessoas, algumas que já os conheciam desde quando eram bebés, que os acarinhavam e lhes faziam companhia, que lhes davam um sentimento de pertencerem a uma comunidade. Houve, também, partilhas sobre o que era mudar de cidade, de país, de viver numa rua onde não se conhece ninguém, em que tudo é estranho e curioso, a timidez de começar uma nova vida e a saudade dos rituais antigos do lugar onde se vivia. Partilharam-se memórias e experiências que uniram um pouco mais os alunos e os professores.
Por entre os conteúdos abordados – a comunicação escrita e oral, a construção do cartaz, as regras para o desenvolvimento do trabalho de grupo, entre outros – surgiu a emoção de cada um se colocar no lugar do outro, de partilhar a perda e a pertença, o valor da amizade.
Esta é uma história sobre os alunos que aprendem envolvendo-se na análise, como cidadãos informados, do seu meio e identificando o que pode ser melhorado para que haja mais qualidade de vida para si e para os outros.
Esta partilha inicial de ideias e de conhecimentos permitiu compreender a motivação dos alunos para aprofundarem o tema, a sua disposição para o trabalharem. Ficou definido o nome do projeto “se esta rua fosse minha…” e identificaram os princípios e os valores que sustentariam o desenvolvimento do projeto: o respeito pelas pessoas, a promoção da saúde e a proteção ambiental, na perspetiva do cuidado pelo cumprimento dos direitos das crianças.
A tarefa seguinte foi analisar o mapa da cidade e identificar as ruas onde todos viviam. O trabalho foi feito nas aulas de História e Geografia de Portugal e de Matemática para compreender de que forma um mapa nos dava informações sobre as distâncias reais e as relações entre as ruas. Fizeram-se viagens virtuais utilizando-se o Google Earth às ruas onde viviam os alunos da turma que tinham vindo recentemente para Portugal e as suas ruas atuais. Compreendeu-se a aplicabilidade do GPS. Calcularam-se distâncias e tempos referentes às viagens efetuadas. A apresentação dos resultados das pesquisas foi acompanhada por debates animados, muitas perguntas e respostas coloridas por imagens e histórias de vida.
No fim, como se tornou costume, todos tiveram de indicar o que aprenderam com estas aulas, construindo um quadro coletivo de aprendizagem – o que um aprende, se partilhado, passa a ser uma aprendizagem coletiva. Daqui salientam-se as aprendizagens matemáticas referentes à construção e interpretação de escalas, à compreensão das distâncias entre continentes ou entre ruas, à relação entre as distâncias a percorrer e o tempo gasto, numa aproximação ao conceito de velocidade e à resolução de problemas vários que foram surgindo. Na História e Geografia de Portugal, as aprendizagens centraram-se na interpretação de mapas, na identificação dos países e das suas culturas, da geografia dos lugares. A voz dos alunos sobre as suas vivências anteriores permitiu refletir sobre a diversidade dos aspetos culturais em jogo, o seu valor na vida de cada um, a forma como modelavam a pessoa e por isso como tinham de ser respeitados.
Esta é uma história sobre os alunos que aprendem envolvendo-se na análise, como cidadãos informados, do seu meio e identificando o que pode ser melhorado para que haja mais qualidade de vida para si e para os outros. Esta história é também sobre os professores que, gestores do currículo, tiram partido da motivação dos alunos para desenhar as questões, propor as tarefas e os recursos a utilizar e, assim, promover a aprendizagem dos conteúdos previamente definidos para esse ano de escolaridade, utilizando processos colaborativos de planeamento curricular.
É uma história sobre o aprender e o ensinar em que ainda há muito para contar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.