“Há vozes que falam mais alto: a dos amigos, da família, daqueles que nos amam”, comentou um amigo, quando partilhei que fui vítima de bullying. É certo que o amor salva, mas há ecos difíceis de silenciar, tal é o poder das palavras. Há aquelas que nos beijam, por serem de amor e de esperança, outras são de ódio e de solidão. É preciso um debate profundo, transversal e empático em torno do bullying. Porque é urgente o amor. É urgente inventar alegria.
Todos os anos, há casos mediáticos de agressões nas escolas portuguesas e instala-se um debate genérico na sociedade pública… até que se evapora. Foi assim há ano, depois de um jovem ser atropelado na Nacional 10-2, no Seixal, a fugir de vários colegas agressores, que ao mesmo tempo gravavam a cena. Para deleite? Para vanglória? É difícil de perceber o que paira na mente de um bullie.
O caso deixou de dar manchetes, o mundo continuou a girar, mas havia uma criança fragilizada, a recuperar de um acidente e a enfrentar o regresso à escola. Mais, existia um processo a decorrer no Tribunal do Seixal contra as jovens que motivaram o atropelamento. Segundo a Agência Lusa, duas delas “foram condenadas a realizar sessões de treino de competências sociais e pessoais”, um programa administrado pela Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais.
O verbo “condenar” não se coaduna com estes casos. Mesmo com os agressores, é fundamental ter uma atitude empática. A empatia permite olhar o mundo pela lente «do outro» e compreender as suas emoções. A verdade é que os bullies são jovens inseguros, frustrados, antissociais e, apesar de tudo, precisam de uma oportunidade, daí a necessidade de não punir, mas integrar.
A empatia permite olhar o mundo pela lente «do outro» e compreender as suas emoções. A verdade é que os bullies são jovens inseguros, frustrados, antissociais e, apesar de tudo, precisam de uma oportunidade, daí a necessidade de não punir, mas integrar.
Questiono-me sobre os programas que estão a ser administrados para o efeito. Como funciona esse treino de competências sociais e pessoais? E questiono-me sobre o nome da instituição que os promove. Estamos a falar de crianças (que contribuíram para um crime, de facto – ainda assim, crianças), não de números para serviços prisionais.
Ali havia um vídeo e um crime bem visível. Já a maioria destas histórias são silenciosas. E o silêncio parte de nós, das vítimas.
Quando estava no quinto ano, tinha dez anos. Não levava o telemóvel para as aulas e, por isso, passava os intervalos a jogar ao berlinde – tinha uma sacola azul, onde guardava a minha “coleção”. Era craque a História e Geografia de Portugal e passava parte das minhas tardes no clube de teatro.
Jamais esquecerei o dia em que, enquanto saía do portão da escola, um grupo de rapazes, mais velhos, aproximou-se. As gargalhadas que cuspiam continuam altas demais. Muitos juntaram-se, pouco fizeram.
Um deles disse-me que merecia morrer. E ali fiquei, estático, só e a chorar. Ia lanchar com a minha avó e recordo-me que o primeiro pensamento que tive foi conter a emoção. Se alguém diz que mereço morrer, é porque existe algo de errado comigo. Algo negro, camuflado, invisível aos meus olhos, que aquelas pessoas conseguiram identificar.
E as palavras têm poder, como avisa O’Neill. Durante anos, encetei uma cruzada interior para desbravar esse meu lado recôndito e percetível para os meus agressores. Criei uma autoimagem errada daquilo que sou, do que mereço. Tornei-me inseguro, porque o bullying dói, ainda. É um senso de quase perpetuidade que Taylor Swift consagra numa das faixas de Folklore, álbum do ano de 2021 nos Grammys, hoax: “it still hurts underneath my scars from when they pulled me apart”.
O silêncio é o maior erro e só tem como consequência a frustração. Precisei e preciso do meu psicólogo para entender que a única e verdadeira pergunta a fazer é: o que há de errado naqueles miúdos? Porque comigo não existe nada.
O bullying é um fenómeno complexo e com raízes profundas. Erradica de uma gente, de uma sociedade, que se rendeu ao individualismo. É sintomático de um espaço desencantado, tudo aquilo que um recinto escolar não deve ser.
Sou um apaixonado, confesso, pela escola, sobretudo a pública, por ser o espaço, por excelência, da magia, dos sonhos e da igualdade. Num mundo idílico, como eu, a escola seria colorida e abrilhantada pela poesia, por teatros, por aulas de música e clubes de desporto. Talvez esteja na hora de apostar em tudo aquilo que não é tão “técnico”, em tudo aquilo que ajuda a criar dentro de cada escola uma verdadeira comunidade. O desporto escolar, a título de exemplo, deve merecer uma especial atenção de toda a sociedade como rampa de lançamento de verdadeiras estrelas, como a vice-campeã olímpica Patrícia Mamona.
É urgente termos professores e funcionários apaixonados, dedicados à construção de um ambiente inclusivo, alicerçado no companheirismo, na solidariedade e na partilha. É uma tarefa árdua, a de “reacender a chama” da educação, já que muitos dos profissionais estão cansados – pelos horários, pela fraca aposta na área. É urgente repensar tudo, talvez. Mas nesse repensar é urgente perceber que a escola é para semear e concretizar sonhos. Para multiplicar sorrisos, nunca os asfixiar.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.