Para um filho deste tempo, como eu, ler Pablo d’Ors é uma bênção. Publicado em 2019 pela Quetzal, O Amigo do Deserto em muito me ajudou a parar no meio da azáfama das nossas rotinas. É fácil desaprender a viver a calma do deserto no meio do frenesim do excesso de informação que palpita numa sociedade, como a nossa, por vezes demasiado histérica com o que se passa, ou pode vir a passar, no mundo em redor. Ainda para mais no atual contexto, de uma crise pandémica que está para durar, pode ser uma grande lição aprender a amar o deserto.
Neste livro, Pablo d’Ors conta-nos como descobriu a beleza do deserto. Numa escrita escorreita, espelha os seus próprios sentimentos com total transparência. Num estilo leve, com muita franqueza, descreve o que se passa no interior de si mesmo.
Tudo começou com um folheto banal e desajeitado que fortuitamente – mais precisamente, misteriosamente – veio parar às suas mãos. Foi assim que ele recebeu algumas informações acerca de uma “associação chamada Amigos do Deserto”. No início, a curiosidade em ir ao deserto. De seguida, a coragem que o leva à experiência concreta de o viver. E depois de regressado à sua vida de sempre, a certeza de nunca mais querer voltar para aquele nada outra vez.
No entanto, inesperadamente, dá-se um fenómeno bizarro: sempre que se encontra sozinho em casa, acaba por ver e rever, vezes sem conta como que espontaneamente, as fotografias daquela experiência de deserto. Misteriosamente, quer repeti-la.
Novamente naquele lugar feito de areia e pouco mais, uma e outra vez, Pablo d’Ors vai então descobrindo, numa lenta progressão, o que realmente se ama no deserto: o vazio de uma boa solidão.
Novamente naquele lugar feito de areia e pouco mais, uma e outra vez, Pablo d’Ors vai então descobrindo, numa lenta progressão, o que realmente se ama no deserto: o vazio de uma boa solidão. Num horizonte de areia sem fim, sente uma “ausência perfeita”, ali onde o vazio não é sinónimo de nada; onde o vazio, antes, existe para ser habitado; ali, onde o vazio aparece como um caminho a percorrer. Pouco a pouco, vai percebendo como o deserto se abre a toda uma vida ainda por descobrir. A abertura do deserto não é estática. Pois não é apenas o viajante quem caminha no deserto. Também a areia avança sobre ele para o transformar. E, mesmo que tudo aconteça num silêncio delicado e paciente, um silêncio que só o deserto pode gerar, trata-se de um processo que lhe dá todo o tempo do mundo. Talvez seja mesmo a eternidade dos Céus.
De facto, enganam-se os que pensam no deserto como uma espécie de quietismo. Porque tanta coisa ali acontece. Ardente de dia, gelada pela noite, a areia transforma-se todos os dias. De quando em quando, levanta-se na fúria de tempestades que carregam o seu nome, acabando por abandonar os viajantes como que náufragos sem água. E, dessa forma, a areia diz-lhes que eles são estrangeiros neste mundo.
E não é tudo. O céu estrelado da noite onde a lua brilha com força, depois do vento do dia ter desenhado paisagens na areia em tons de vermelho, laranja e amarelo, aquece os corações de quem ali se encontra impávido e sereno. É a esperança daquelas cores intensas que faz do viajante, não mais um simples estrangeiro, mas um peregrino em caminho.
Apesar de ser padre e teólogo, Pablo d’Ors não nos fala explicitamente de Deus. Limita-se a descrever a sua experiência de deserto.
Apesar de ser padre e teólogo, Pablo d’Ors não nos fala explicitamente de Deus. Limita-se a descrever a sua experiência de deserto. Este surge não só como um lugar desocupado, mas sobretudo como um processo de desprendimento. Conduzindo-o à experiência de escassez, o deserto vai destruindo os seus hábitos de comodismo, de autossuficiência, de egoísmo. Trata-se de um lugar que se esvazia para que novos processos aconteçam. Qual terra virgem onde uma nova vida pode nascer, o deserto ensina-lhe que ele só é livre quando estiver pronto para partir com tudo o que é realmente seu: pouco ou quase nada. Assim, em vez de dizer “Deus”, Pablo d’Ors limita-se a descrever a sede e a saudade. No fundo, como um peregrino sem uma meta clara preestabelecida, caminha na esperança de quem está completamente nas mãos de um Outro. À medida que se vai tornando uma pessoa cada vez mais desprendida, o peregrino aprende a amar a sede. E, assim, abre-se a uma vida que só se realiza em comunhão.
Não é certamente por acaso que os profetas bíblicos nos falam do deserto como um lugar com muita vida. Porque o deserto não se reduz a uma “terra árida, sequiosa, sem água” (cf. Sl 62/63). Ao deixar que alguém como nós o habite, o deserto também se revela como um processo de uma vida a florescer em abundância.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.