Há uns anos encontrei num artigo de opinião – que a minha memória atribui à prosa melancólica e elegante de Pedro Mexia – uma frase de que gosto particularmente: as pessoas são cada vez mais racionais na vida privada e mais emotivas na vida pública. Cito de cor, correndo o risco de desvirtuar a intenção do autor. O certo é que, desde então, perdi a conta às vezes que a repeti para mim ou a partilhei com terceiros. O pretexto é quase sempre o mesmo: os políticos (e a política) e a relação que os portugueses mantêm com estes.
Com a injustiça que resulta de qualquer generalização, detenho-me em dois comportamentos perante a política em geral. O primeiro consiste essencialmente na fidelidade canina a um político, partido ou ideia. Na prática, uma versão requentada do perigoso princípio “My country, right or wrong”. O segundo é uma espécie de filosofia do cinismo involuntária: os políticos são todos iguais, uns videirinhos (seguindo-se uma clássica referência ao poleiro que cada um dos ditos procura). E como, na perspetiva do cínico, nada do que faça servirá para alterar a realidade, conclui que o mais avisado é manter uma distância higiénica da política.
As diferenças entre um e outro são mais aparentes do que reais. Do ponto de vista lógico, assentam ambos em pressupostos errados. Aquele vincula-se a uma pessoa, ideia ou partido com um fervor quase fanático – mais comum nos adeptos das agremiações desportivas –; o “político” pode transformar-se num homem providencial; o partido numa seita que não admite membros recalcitrantes e a ideia num dogma que, por definição, não se discute, aceita-se. Daqui resulta uma suspensão do juízo crítico, a supressão da razão e reflexão e a aceitação acrítica dos diktats de um partido, pessoa ou o que aparenta ser a decorrência óbvia de um princípio indiscutível.
Este último confunde ceticismo com cinismo. Esquece-se que a política tem tudo para correr mal – e normalmente assim sucede. Justamente porque os políticos – espantem-se – são homens e mulheres como os demais, com os defeitos e as virtudes que encontramos nos nossos amigos, familiares ou nas pessoas com quem nos cruzamos. E – novo espanto – cometem erros, são por vezes desonestos, indecentes, demagógicos e mesmo criminosos. Mas não raras vezes, este comportamento deriva mais do ressentimento do que do olvido. Explico. O cínico é com frequência um antigo crente de um partido, ideia ou homem providencial que por uma qualquer circunstância se desiludiu ou caiu em desgraça. E como o mundo em que vivia acabou, então tudo o que resta é “o mesmo”. E este mesmo já não serve.
E se não apreciamos quem lá está, então talvez seja mais útil questionarmo-nos primeiro se gostamos da comunidade que criamos e que estamos inseridos. Pois é desta que provém quem nos governa e não de Marte.
Em qualquer dos casos, estamos perante dois modos de percecionar a política e de nela agir – ou não agir – que se revelam profundamente malsãos para uma democracia liberal. Na sua essência, a política é a arte de alcançar o poder e de o conservar. Tais propósitos, numa sociedade decente, são balizados pelo respeito por normas de mera ordenação social – cuja única sanção é a reprovação da comunidade – até à observância das leis penais que podem conduzir à privação da liberdade. Mas dentro destes limites o jogo da política e o comportamento dos políticos é frequentemente indecente e pouco recomendável. Mas também pode ser louvável, honesto e brioso.
Quem nos governa e é responsável por fazer política é gente daqui. Muito daqui. Não estamos sob domínio ou protetorado estrangeiro. E sendo dos nossos que falamos, convém ter em conta, por um lado, que os messias não abundam na História e não consta que algum tenha passado por cá. Por outro lado, por muito desagradável que seja encararmo-nos ao espelho – e, de facto, por vezes, é – aquela gente, “eles”, somos nós. Podemos não gostar do que vemos, mas o estado da política e a qualidade dos políticos é em grande medida o reflexo da sociedade em que vivemos. E se não apreciamos quem lá está, então talvez seja mais útil questionarmo-nos primeiro se gostamos da comunidade que criamos e que estamos inseridos. Pois é desta que provém quem nos governa e não de Marte.
Justamente por ambos os comportamentos se filiarem essencialmente na emoção em detrimento da razão, talvez fosse aconselhável deixar aquela para a vida privada e guiarmo-nos por esta nos assuntos públicos. Com uma atitude de consciente ceticismo: duvidar até prova em contrário, pois convém não esquecer algo fundamental: estamos a falar de homens e mulheres, não de deuses nem de demónios.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.