Há pouco mais de um ano Donald Trump tomava posse como Presidente dos EUA. O mundo levava as mãos à cabeça entre o medo e a desilusão, tal como fizera durante toda a campanha que o levou à vitória, sublinhando que é um homem de fora do establishment. O discurso dito populista realça esta oposição entre “os poderosos” (entenda-se, os Governos “de sempre”) e “as pessoas” (de onde alegadamente provêm estes líderes). Mas tudo isto tem um tempo. Chega o tempo em que um político vindo “de fora do sistema” já não se pode considerar como estando fora. Por exemplo: quem é hoje Berlusconi, que está de novo na ribalta política do seu país, quando a Itália entretanto já teve um Beppe Grillo?
No Extremo Oriente, o Japão, com a consolidação eleitoral do governo de há quatro meses, Shinzo Abe pode agora fazer as alterações constitucionais necessárias para a militarização do país (o que, na sequência da Segunda Guerra Mundial, tinha ficado interdito pela Constituição). Procurando contrabalançar o poder chinês, tendencialmente mais isolado no panorama global, o Japão deseja retomar a Parceria Transpacífico com os EUA, uma proposta que agilizava as trocas comerciais entre as Américas e a Ásia, e à qual Donald Trump se mostrou avesso.
Há já algum tempo que aguardamos por desenvolvimentos nas relações dos EUA com a Coreia do Norte depois de várias ameaças mútuas e ensaios militares. Também esperamos para saber qual será o desenrolar das relações com o Irão, depois de Trump dizer à boca cheia, na Assembleia Geral da ONU, que o país liderado pelo aiatola Khomeini era corrupto, que suportava o terrorismo e que tinha um programa de armamento que constituía uma ameaça para o mundo, ao qual se deveria pôr fim.
Tudo isto se verifica ao mesmo tempo que constatamos como a política externa desta Administração norte-americana é mais bilateral do que multilateral. Trump despreza a ONU e a NATO, e tem apostado nos diálogos com os pares que lhe interessam. Entretanto, a China tornou-se um interlocutor de primeiro nível, remetendo a Rússia para um plano secundário. Trump negoceia com a postura do jogador que só olha para o seu jogo – e para isso apenas estabelece as pontuais parcerias necessárias.
Conclusão: hoje o mundo não encontra na diplomacia dos EUA uma referência que congregue e inspire – seja em que sentido for. Por exemplo: George W. Bush juntou à sua volta várias nações procurando combater o que chamou de “Eixo do Mal”; Barack Obama não assumiu a concepção da democracia como valor universal que deve ser implementado a qualquer custo e optou por ser um player de soluções de apaziguamento e compromisso, através do diálogo. Apesar de perfilharem visões diferentes do mundo, o ponto é que ambos encabeçaram linhas de acção que foram acompanhadas por outros parceiros internacionais, o que era importante para assegurar o espaço na cena mundial. Hoje, os EUA não têm um campo próprio de acção onde sejam seguidos. Mas até que ponto faz diferença uma postura mais bilateral ou mais multilateral de um país como os EUA?
Uma política eminentemente bilateral revela um olhar de reduzida amplitude do mundo. É uma redução do Estado àquilo que tem dentro das fronteiras e àquilo que produz. Ao viver para o sustento do seu pequeno ou grande pedaço de terra, apenas se busca acordos que satisfaçam e resolvam os problemas que lhe dizem directamente respeito, pedindo isto àquele e oferecendo-lhe aquilo em troca, e por aí adiante. Ao contrário, quem é consciente de ser administrador de um Estado que pertence a algo muito maior tem necessariamente uma visão de conjunto. E isto é um verdadeiro sinal de liderança. Aquilo que o visionário quer é sentar à volta da mesma mesa, para que a casa comum seja cuidada. Congregando e criando pontes, lidera.
A consciência da realidade não é algo que possamos dar por garantido na classe política. “Cuidar da casa comum” não é um chavão do Papa Francisco, é uma condição necessária para a sustentabilidade da vida humana. Viver numa casa comum não é uma escolha, é uma realidade. O que aqui é escolha é viver fechado no meu quarto a achar que é um palácio auto-suficiente ou reconhecer o espaço de encontro e comunhão que a sala dessa casa é. Até posso ter uma casa de banho no quarto e montar um frigorífico e um fogão. Tal como numa casa, também na política externa, posso abrir a porta para negociar o que me interessa com os meus irmãos ou flatmates. Mas se não me abro aos espaços comuns nunca vou viver naquilo em que realmente vivo: uma casa! É escolher entre a vida real ou uma second life.
A realidade impõe-se, mas fugimos dela. Achamos que sabemos tudo e que somos a geração global, porque viajamos e porque as redes sociais nos dão a “ilusão da informação perfeita” e completa. Mas, na verdade, não aprendemos a viver com a realidade que a casa comum é. Temos pavor de conviver com a diferença. Temos pavor de lidar com aquilo que há anos existe: a globalização. Vigora o princípio de que o que é diferente deve ser separado – no fundo, porque é “melhor” para cada um ter o seu espaço e, assim, cada um na sua pretensa casa não maça o outro. Assim se suporta nacionalismos, incapacidades de construir alianças e uma cultura de extremar posições. Cada um por si.
A tal concepção exclusivamente bilateral na política externa até pode não criar estragos directos – e hoje isso já seria significativo. Mas, o simples facto de não fazer o mal não é grande motivo de orgulho para uma civilização. Aliás, há quatro meses, no primeiro Dia Mundial dos Pobres, o Papa Francisco recordava como a omissão, na pele da indiferença pelo outro, tem alimentado o monstro da pobreza no mundo.
Na verdade, temos de descobrir que “o mundo é algo mais do que um problema a resolver; é um mistério gozoso que contemplamos na alegria e no louvor” (Laudato Si §12). Os nossos planisférios continuam com a Europa no centro – mas são mapas que não ajudam a olhar o mundo de hoje. O desafio que nos é lançado não é apenas de abrir o nosso espaço e ir às fronteiras, mas pensar a nossa realidade com outros a partir dessas mesmas fronteiras. O génio que o fizer tomará o leme de uma nova geopolítica.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.