“Fala-me do chão”: o mundo diagonal

O mundo e o pensamento diagonal serão, portanto, a denúncia da domesticação; da vida que não tem de ser, necessariamente, consecutiva e consequente; da vida, que não se tem que se circunscrever a um só plano.

Em dias de tempestade, só o simples gesto de entrar em casa pode ser desafiador. Carregados com mochilas e compras, tentando o equilíbrio entre as chaves, numa mão, e o guarda-chuva, noutra, procurando a chave certa ou “trazendo tudo” para evitar voltar atrás, somos, tantas vezes, surpreendidos por uma chuva tão forte que torna qualquer tentativa de proteção impotente; uma chuva que não se limita a cair verticalmente, mas que, influenciada pelo vento, se torna diagonal.

Ficamos encharcados, escorregadios, marcados pelo tempo. Mas talvez o protesto e o desconforto revelem a necessidade dessa mudança de direção.

Saber que o mundo nos incomoda é sempre perturbador. Que ele nos invada e não nos deixe incólumes, devolve-nos à ameaça da vida dilacerante, no meio de existências blindadas. Nos Irmãos Karamazov de Dostoievski, uma voz pergunta “Porque vieste incomodar-nos?”, como se fosse o grito sem guerra, de quem quer sair sempre a ganhar, ou tenta a sempre impossível frase certa.

Entramos. Descalçamos os sapatos, para não sermos notados. E é então que o mundo parece regressar devagar à medida que reacendemos as luzes. “Ainda que quisesse dar a minha vida pelos outros, isso já não é possível, pois já passou essa vida que era possível”, suspira-se na mesma obra do autor russo.

Por isso, somente um mundo e um pensamento diagonal, contraposto ao universo linear, será capaz de resgatar o mundo da liberdade e da obediência compradas por pão, assim como da loucura planeada como a maior das loucuras (Cf. Pier Paolo Pasolini, Entrevistas Corsárias). O mundo e o pensamento diagonal serão, portanto, a denúncia da domesticação; da vida que não tem de ser, necessariamente, consecutiva e consequente; da vida, que não se tem que se circunscrever a um só plano; da vida, que se recusa a tomar a forma de mecanismo; da vida, como jogo entre a submissão e a dependência, de que tememos abrir mão, por recearmos perder o controlo; da vida, que pode responder por si.

E é esse modo anatómico de ver o caminho, onde não chegam nem horizontalidade nem verticalidade, que sobra a Jesus, como a um sem-abrigo, sem horas para comer ou beber, para que a vida seja não só uma passagem, mas um atravessamento.

E é esse modo anatómico de ver o caminho, onde não chegam nem horizontalidade nem verticalidade, que sobra a Jesus, como a um sem-abrigo, sem horas para comer ou beber, para que a vida seja não só uma passagem, mas um atravessamento.

“Reconhecer!”, diz Estragon em En attendant Godot, “o que é que há para reconhecer? Passei toda a minha vida a rastejar na lama! E tu a falares-me de paisagem! (Olha desenfreadamente à sua volta.) (…) Tu e as tuas paisagens! Fala-me do chão!”. Talvez haja algo a ser desencalhado, ou colhido da árvore, ainda que ela já esteja nua. Talvez se tenha tornado mais insensato e difícil apreender a degradação. Talvez a pureza possa ser trocada por um apocalipse mais feroz. Talvez uma casca vazia ainda possa libertar a inocência incompreensível.

Afinal, quem sabe se mais do que uma experiência teleguiada, contida e sintética, não precisamos de uma fome incurável?

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.