“Eu vim trazer o fogo à terra…”

Este fogo é agora derramado nos nossos corações, trabalha a terra que somos, é presença deste mistério no mais íntimo de cada um de nós.

Estas palavras de Jesus sempre me perturbaram. O contexto em que nos aparecem no Evangelho de Lucas (12, 49-53) liga de imediato este fogo à vida nova que nascerá da cruz de Jesus, ao batismo a que o próprio Senhor se sujeita (v. 50). Mas os versículos seguintes evocam também a radicalidade associada ao Seu seguimento, que ultrapassa as lógicas familiares e de sangue. Um seguimento que pode ser causa de dissensões e conflitos, pondo pais contra filhos, filhas contra mães, noras contra sogras…. (vv. 51-53). O próprio Jesus se mostraria incendiário nas suas palavras duras contra a hipocrisia dos fariseus e dos escribas, contra a dureza de coração dos doutores da Lei e a cegueira e inflexibilidade das autoridades religiosas. No templo de Jerusalém, face à invasão do espaço aberto aos gentios por cambistas e vendedores de pombas e animais para o sacrifício, armar-se-á do chicote para os expulsar, relembrando como a casa de Seu Pai é uma casa de oração, aberta a todos os povos. Já então se evoca o zelo pela Casa de Deus, que devora Jesus, tal como devorava os profetas (cf. Jo. 2, 13-22). Um zelo que é fogo, e que consome por dentro, impele a falar, a agir, a denunciar. Assim o testemunhava já Jeremias, enviado para anunciar o difícil juízo de Deus face às abominações praticadas pelo Seu povo: à tentação do desânimo sobrepunha-se esse fogo, que habitava o interior dos seus ossos, e que o levava a anunciar, a falar em nome de Deus (Jer. 20, 7-9).

Jesus afirma ter vindo trazer o fogo à terra, e que só deseja que ele se acenda. Um fogo que exige o seu batismo, essa verdadeira passagem da morte à vida, do Homem velho para a nova criação. Na vida dada até ao fim, afirma-se a vitória do Amor sobre a morte, e a força desse fogo capaz de fazer irromper a luz no meio das trevas e de renascer a vida no mais absurdo da existência humana. E esse fogo é promessa de presença, de dom que não desiste nem abandona. O “Estarei sempre convosco”, o máximo que o amor pode dizer, acontece na entrega desse fogo, que no dia de Pentecostes desce do Alto sobre os discípulos de Jesus, reunidos em oração com Maria, a Mãe do Senhor. E é graças a esse fogo que os medos se dissipam, o anúncio acontece, a palavra se faz vida, e a boa-nova do amor de Deus e do dom da vida nova em Cristo é pregada em todas as línguas.

Na vida dada até ao fim, afirma-se a vitória do Amor sobre a morte, e a força desse fogo capaz de fazer irromper a luz no meio das trevas e de renascer a vida no mais absurdo da existência humana. E esse fogo é promessa de presença, de dom que não desiste nem abandona.

O fogo que se acende e incendeia habita agora aqueles que crêem em Jesus e o coração do mundo, tornado, pela encarnação de Jesus, lugar da sua revelação e da sua presença. Este fogo, equiparado também ao vento que sopra onde quer (Jo. 3, 8), age, anima, cria continuamente. É um fogo que aquece, que permite a vida, que ilumina e ajuda a ver mais claro, que torna os espaços mais humanos (não são as nossas casas “fogos”, evocando o fogo aceso que, outrora, sinalizava a casa habitada?). É também o fogo fascinante, do mistério totalmente outro e ao mesmo tempo presente, como na sarça ardente que no Horeb abriu ao encontro de Moisés com Deus. Este fogo é agora derramado nos nossos corações, trabalha a terra que somos, é presença deste mistério no mais íntimo de cada um de nós.

Mas importa que este fogo se acenda, que incendeie, que não se apague. Se Ele é promessa de Deus de nunca desistir do Homem, de nunca o abandonar, Ele é também desafio para a escuta permanente, para o discernimento e para a ação. Não foi Jesus a dizer que só o Espírito conduzirá à verdade, que só n’Ele compreenderemos cada vez melhor o mistério de Deus e o mistério da nossa própria Humanidade? E não afirma Paulo que o Espírito reza e grita em cada um de nós e na própria criação, até que se chegue à plenitude da vida redimida?

Em todos os tempos, e também neste em que vivemos, somos por isso chamados a acolher este fogo e a deixarmo-nos incendiar por Ele. E com Ele procurarmos os caminhos novos para que a boa-nova de que somos portadores, a do amor de Deus por todos e todas revelado em Jesus, o Cristo, chegue a todas as casas, seja fogo que aquece e renova a vida. Que Ele nos ensine a escutar os seus próprios apelos e sinais, a falar as linguagens do nosso tempo, a ser força de humanidade. Que Ele nos ajude a ultrapassar o medo e a desconfiança, para chegarmos a todas as periferias e a todos podermos acolher. Que Ele nos ponha a caminho, na partilha e na escuta, como Igreja que se reconhece como povo de batizados, numa diversidade valorizada e reconciliada, centrados no essencial que importa sempre redescobrir. Que Ele nos queime sempre por dentro, para que a Palavra não se encerre no silêncio ou no conforto dos nossos grupos, mas seja força de transformação do mundo.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.