Estupidez ou maldade? Que força rege o ser humano de hoje?

Não sei se o mundo se está a tornar mais malicioso ou estúpido, tanto mais que a possibilidade de pessoas estúpidas serem más é bastante elevada. Mas deveremos resistir a estas duas forças, esperar e lutar por um mundo mais justo e sensato.

“Nunca discuta com pessoas estúpidas. Elas vão arrastá-lo para o nível delas e depois derrotá-lo com experiência”

Numa sala de reuniões, um comité político discute, mediante o uso de acrónimos e de abreviaturas, ao ponto de se tornar incoerente, novos modos de encontrar algo para ser tributado. De repente, a cena muda e surge um homem em pé dentro de um rio, com galochas calçadas, as calças arregaçadas até aos joelhos, camisa branca com as mangas arregaçadas até aos cotovelos, colete sem mangas e um lenço de mão com nós nas quatro pontas a servir de chapéu. Está com os braços arqueados, similares aos de um macaco. Em voz alta, numa voz forçada, mas que pronuncia as palavras sílaba a sílaba, o homem diz: “Eu colocaria um imposto sobre todas as pessoas que se encontram dentro de água”. Subitamente, olha à sua volta e apercebe-se que está dentro de água e começa a gritar “Uau! Uau!”, visto acabar de compreender que acabou de pedir que seja taxada a situação na qual ele se encontra.

Esta cena ocorre no 2º episódio da 2ª temporada da fantástica e divertida série Monty Python’s Flying Circus e a personagem é um dos Gumby (https://www.youtube.com/watch?v=QmFYHmGkfxw). Os Gumby são personagens icónicas e cuja expressão-feita recorrente é “my brain hurts!” (o meu cérebro dói!). Eles caracterizam-se por uma particular falta de inteligência e recorrente estupidez, apesar de todos terem títulos de Professor ou de Cirurgião ou, ainda mais especificamente, Cirurgião do Cérebro.

A recordação dos Gumby veio-me à mente quando há umas semanas fui questionado por um amigo que me perguntava se, na minha opinião, no mundo estava a aumentar a maldade ou a estupidez. Percebi que se tratava de uma provocação de amigo com vista a entalar-me num tema cuja reflexão e solução não é fácil nem simplista. Contudo, havia qualquer coisa de sério no seu questionamento.

Sem dúvida os conflitos humanos, desde os mais simples e comezinhos aos mais complexos, globais e violentos, estão profundamente marcados pelo primeiro fator. Contudo, conforme Dietrich Bonhoeffer alerta na sua abordagem acerca da estupidez (“After Ten Years” in Letters and Papers from Prison), a estupidez não só está continuamente presente na existência humana como “[…] é um inimigo mais perigoso do bem do que a malícia. Pode protestar-se contra o mal; ele pode ser exposto e, se necessário, impedido pelo uso da força” (p. 22). Pelo contrário, diante da estupidez estamos indefesos. Os factos, a lógica e a argumentação caem em saco roto, pois facilmente são negados ou abandonados sob o rótulo de ideias ou dados ‘inconsequentes’ ou ‘acidentais’. Nem a violência surte qualquer efeito.

Segundo Bonhoeffer, a raiz do problema não reside num defeito intelectual, mas humano. Nesse sentido, não será um estado natural ou inevitável, sendo, em vez disso, um processo pelo qual as pessoas se tornam estúpidas ou, pelo menos, deixam que isso lhes aconteça. A estupidez será uma privação de independência interior, uma transformação que faz dessa pessoa o eco de slogans, palavras de ordem ou frases-feitas. Torna-se, diz Bonhoeffer, num ‘instrumento sem mente’. O tipo de pessoa de que o detentor de poder autocrático precisa.

Bonhoeffer escreve no tempo da ditadura de Hitler e da sua prisão. Contudo, o aprisionamento a que se refere não ocorre somente nos momentos dramáticos da história, mas nos momentos mais simples do dia-a-dia. Para uma compreensão mais leve, quotidiana e prática, recomendo a leitura da proposta de Carlo M. Cipolla em As Leis Fundamentais da Estupidez Humana. Aí podemos encontrar a 3ª lei fundamental da estupidez: “uma pessoa estúpida é uma pessoa que causa perdas a outra pessoa ou grupo de pessoas enquanto ela própria não retira nenhum ganho da ação e pode até incorrer em perdas” (p. 34).

Cipolla alerta para o facto de as pessoas racionais e sensatas encararem com ceticismo e incredulidade esta lei, pois parece realmente estranho que alguém pratique ações cujo resultado final lhe é prejudicial. Contudo, de modo perspicaz, orienta o nosso olhar para o mundo da vida diária. Será fácil pensar-se em casos onde, quando duas partes se encontram, apenas um dos lados tira proveito; ou ocasiões onde ambos – a solução inteligente – ganham. Todavia, considera que não são estes os acontecimentos que marcam constantemente a vida humana. Nas suas palavras:

“O nosso quotidiano é sobretudo composto por casos em que perdemos dinheiro e/ou tempo e/ou energia e/ou apetite, alegria e saúde por causa da ação improvável de uma qualquer criatura irracional que não tem nada a ganhar e que realmente não ganha nada por nos causar embaraços, dificuldades ou por nos prejudicar” (p. 35).

No supermercado, nos contactos com as operadoras de telecomunicações, na relação com o Estado, nas atividades quotidianas dos nossos empregos, na nossa vida pessoal, etc., quantas vezes não lidamos com pessoas estúpidas, ou não somos nós os estúpidos!

Cipolla fornece uma conclusão pouco animadora. Entende que a estupidez é um fenómeno que ninguém compreende ou consegue explicar. Ou melhor, que a única explicação disponível é a de que a pessoa com quem estamos a lidar é estúpida. Esperar-se-ia mais. Pelo menos, uma ajuda sobre o modo como lidar com pessoas estúpidas ou até, mais ousadamente, como minimizar o seu número. Algo que a seu ver não é possível, porque violaria a 1ª lei: “inevitavelmente, toda a gente subestima sempre o número de indivíduos estúpidos em circulação” (p. 19). Todavia, a sua abordagem não é despicienda. Alinhado com Bonhoeffer, esta não só ilustra e caracteriza o fenómeno, ajudando a compreender a estreita ligação entre a estupidez e o poder, como fornece gráficos para que cada um possa classificar a estupidez dos outros e a sua também.

Se, tal como Bonhoeffer e Cipolla, tivermos aversão à estupidez, aos Gumby desta vida, talvez o passo mais adequado seja dedicarmos uma parte significativa dela ao desenvolvimento da nossa independência interior. Um bom ponto de partida pode ser o desenvolvimento das virtudes da paciência e da humildade.

E se, tal como Bonhoeffer e Cipolla, tivermos aversão à estupidez, aos Gumby desta vida, talvez o passo mais adequado seja dedicarmos uma parte significativa dela ao desenvolvimento da nossa independência interior. Um bom ponto de partida pode ser o desenvolvimento das virtudes da paciência e da humildade. Certamente ajudarão a que não estupidifiquemos e possamos desenvolver uma perspetiva da vida na qual não nos agarremos aos pequenos nadas que, por vezes, constituem verdadeiros campos de batalha onde não há vencedores. Será uma boa ideia não esquecer a frase apocrifamente atribuída a Mark Twain: “Nunca discuta com pessoas estúpidas. Elas vão arrastá-lo para o nível delas e depois derrotá-lo com experiência”.

Por isso, respondendo ao meu amigo, não sei se o mundo se está a tornar mais malicioso ou estúpido, tanto mais que a possibilidade de pessoas estúpidas serem más é também bastante elevada. O que me parece claro é que, malgrado as leis de Cipolla, deveremos resistir a estas duas forças e esperar e lutar por um mundo mais justo e sensato.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.