As últimas duas semanas do Tempo Comum e a primeira semana do Advento é aquela altura do ano litúrgico em que o sacerdote ou diácono que proclama o evangelho na missa acaba a duvidar da justeza da aclamação final “Palavra da salvação”. Depois de anunciar aos fiéis que “há-de erguer-se povo contra povo e reino contra reino, e haverá fomes, pestes e terramotos em vários sítios” e, no entanto, isto “será apenas (!) o princípio das dores” (Mateus 24, 7-8), é natural que o ministro ordenado tenha a tentação de mudar em pergunta ou perplexidade aquela solene conclusão: “Palavra da salvação?” ou “Palavra da salvação?!”.
Engana-se quem pensa que só os “leigos” em matéria bíblica é que se deixam incomodar por semelhantes trechos, como se tudo não passasse de um mal-entendido, facilmente desfeito com duas ou três pinceladas de sã teologia. Claro que saber teologia e estudar o texto com as ferramentas da exegese ajuda (e bastante!) a perceber qual é o contexto e intenção destes e de outros textos de tonalidade apocalíptica. Contudo, isso nunca desfaz inteiramente o “nó”. Aliás, se o desfizer, é sinal de que o intérprete se acha maior que o texto. As palavras de Jesus, sobretudo estas palavras mais duras de escutar!, não cedem à “kryptonita” de discursos mais caseirinhos e redondos. São ásperas e colocam-nos diante aquilo que até já nos esquecemos que professamos: vivemos no fim dos tempos e da História e esperamos uma transformação de toda a Criação que não será (que já não é!) sem dores de parto.
Na verdade, talvez nunca nenhuma geração de cristãos precise tanto de escutar o anúncio do fim como a nossa.
Há que reconhecer que os quase vinte séculos de cristianismo nos prodigaram abundantes e dolorosos exemplos do valor incendiário daquelas palavras ou para ser mais exato, de leituras demasiado ansiosas por aplicá-las ao acontecimento X ou à situação histórica Y. Os chamados “milenarismos”, com ou sem messias, deixaram um amargo de boca àqueles que se deixaram contagiar pela energia do “agora é que é!” e, não raras vezes, produziram mais cadáveres que boas obras. Basta recordar os horrores a que o fervor milenarista criado pela primeira cruzada (1096-1099) deu origem em tantas cidades alemãs: massacres de judeus em Speyer, Worms, Mainz, etc.
Este lado negro da história da interpretação não nos condena, felizmente!, ao que nos poderia parecer a única alternativa viável: rasgar aquelas páginas do Novo Testamento ou, como já o fazemos, passar “olimpicamente” por cima delas. Na verdade, talvez nunca nenhuma geração de cristãos precise tanto de escutar o anúncio do fim como a nossa.
Precisamos de “ser abanados” pela certeza de que Reino vem e vem mesmo e redescobrir aquela urgência cheia de espanto e de esperança dos primeiros cristãos, daqueles que escutaram aquelas palavras no alvor desta nossa história.
A dois mil anos de distância, a ideia de que o acontecimento Jesus Cristo inaugurou o fim dos tempos e que o Reino de Deus está próximo chega até nós como um artigo de fé pouco ou nada relevante para o nosso dia-a-dia. A convicção entre os primeiros cristãos de que “já falta pouco!” deu lugar ao mistério dum tempo da Igreja que se prolonga sem cessar ao ponto de adormecer em nós tanto a esperança como o temor. Diante disto, a tentação é reduzir a questão à sorte de cada indivíduo: afinal, morrer, seguramente morreremos, com ou sem fim da História no horizonte. Mas, essa interpretação preguiçosa reduz a esperança a uma gestão paliativa da ansiedade pessoal diante da morte e transforma a Igreja numa espécie de “centro de dia”. Não é de espantar, por isso, que se multipliquem as quezílias por coisa nenhuma no seio das nossas comunidades. Nisto, quase sem nos darmos conta, cumprimos as palavras de Jesus: desistindo de esperar, começamos a espancar-nos uns aos outros e a entregarmo-nos ao doce convívio dos satisfeitos (Mateus 24, 48-49).
Por esta razão, e por mais paradoxal que isso nos pareça, aqueles trechos do evangelho que preferiríamos saltar talvez sejam uma providencial “Palavra da salvação”. Precisamos de “ser abanados” pela certeza de que Reino vem e vem mesmo e redescobrir aquela urgência cheia de espanto e de esperança dos primeiros cristãos, daqueles que escutaram aquelas palavras no alvor desta nossa história. No cenário quase-apocalíptico em que a pandemia que estamos a atravessar nos colocou, a Igreja, e cada um de nós!, não pode continuar a viver como se já estivesse tudo visto e sabido e bastasse a repetição complacente das mesmas lamúrias e das mesmas certezas. A feliz metáfora do Papa Francisco no início do seu pontificado – a Igreja é ou tem de ser um hospital de campanha – nunca teve tanta pertinência e realismo como nos tempos que nos são dados viver e ela oferece-nos o critério para julgar a verdade da resposta que damos e daremos ao mundo. A promessa de Jesus de que o Reino pode encontrar-nos de cabeça erguida (Lucas 21,28) depende de abraçar, aqui e hoje, a urgência de acolher esse Reino, deixando que a caridade, a justiça, o cuidado dos últimos, a construção da paz sejam a marca das nossas vidas e sinal de que ainda esperamos algo: venha a nós o Vosso Reino.
Bom Advento!
Fotografia: cyrus gomez – Unsplash.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.