Entre o palco e o púlpito. Será que é recomendável a música (dita) cristã?

A música tem esta coisa gregária de nos juntar a estranhos e mais ou menos conhecidos, para celebrar palavras e sons. Mas quando ouço falar em música cristã, a minha tentação é de fugir como o diabo da cruz. Não é por mal, é mesmo por gosto

Os gostos discutem-se, não se impõem, que é coisa diferente. Mas, na hora da verdade, acabamos por querer impor os gostos uns aos outros, “tens de ouvir isto” – e gostar, subentende-se. A música tem esta coisa gregária de nos juntar a estranhos e mais ou menos conhecidos, para celebrar, em conjunto, aquelas palavras e aqueles sons. Mas quando ouço falar em música cristã, a minha tentação é de fugir como o diabo da cruz. Não é por mal, é mesmo por gosto.

Nos dias da Jornada Mundial da Juventude, em agosto, pude ir confirmando aqui e ali a minha tese: no palco, havia púlpito a mais, sem rasgo ou criatividade, num aceno a um pop-folk de guitarras dedilhadas e bateria dengosa (e todos, algures, transformaram Simon & Garfunkel e Bob Dylan em baladinhas com poesia de mastigação fácil) ou um rock-fm daquele que acha que os solos de guitarra se fizeram para se estenderem até ao céu, intermináveis. Tomo o todo pelas partes que ouvi, mas facilita ao que venho.

Ryan Tremblay veio a Lisboa, nos dias da JMJ, e diz de si e da música que faz que “é em parte testemunho e em parte convite para quem quiser ouvir”. Em agosto, à Agência Ecclesia, o cantor americano de Nashville confessava-se: “Uma vez um padre meu amigo disse-me: As tuas canções têm mais poder que as minhas homilias. Porque as pessoas não saem a cantar as minhas homilias, mas cantam as tuas canções”, explicava o músico americano. Fui ouvir. As homilias do padre amigo devem ser mesmo muito fraquinhas. Sem pôr em causa a sua entrega: “Rimo-nos frequentemente, temos grande alegria no que fazemos e esforçamo-nos por criar uma atmosfera onde todos os presentes, incluindo nós, se possam lembrar de deixar um pequeno espaço nas nossas vidas para que a graça de Deus nos inunde mais uma vez. Esse é o objetivo de cada apresentação.”

“Rimo-nos frequentemente, temos grande alegria no que fazemos e esforçamo-nos por criar uma atmosfera onde todos os presentes, incluindo nós, se possam lembrar de deixar um pequeno espaço nas nossas vidas para que a graça de Deus nos inunde mais uma vez. Esse é o objetivo de cada apresentação.”

Apesar da transcendência que se sente, a solução não é o regresso ao canto gregoriano, a Bach, Mozart, Monteverdi ou Brahms — ou apenas reutilizar a fórmula de Taizé, que traz uma beleza muito própria. A solução talvez seja mesmo seguir as pisadas de um grupo de gente com raízes a igrejas evangélicas.

Com a graça de Deus, vários músicos apresentaram-se em pleno século XXI a meio caminho entre o palco e o púlpito: assumidamente cristãos, acolitaram-se na editora FlorCaveira, com o mote “Religião & Panque Roque”, fundada por um pastor batista, Tiago Cavaco, e pelo seu amigo Samuel Úria. A sua carteira de edições é muito respeitável: Tiago Cavaco, que já assinou como Tiago Guillul e integra Os Lacraus e outros projetos, mas também Úria, Jónatas Pires, Manuel Fúria, Diabo na Cruz, B Fachada, João Coração ou Os Pontos Negros, entre outros. Há coletâneas com títulos deliciosos como Cinco Subsídios para o Panque-Roque do Senhor ou Karaoke no Mundo das Trevas, um “novo disco no dia da Reforma”, que se antecipava como “o disco, em forma de cassete, [que] sai no dia 31 de outubro [e] que é tanto Halloween como Reforma Protestante”.

Há uma certa heresia na ortodoxia destes evangélicos, na música e nas palavras: guitarras em distorção, canções mais gritadas que cantadas, vozes que sussurram amores impossíveis ou recordam as chamas do inferno, temas que dão pelo nome de Toca Xutos ou Salmo 20, Um coração partido é um coração curado ou Sinal da Cruz Invertida, ou versos que nos dizem “Conheci um velho chamado Nicodemos”. Lutero levantou-se de novo para promover uma reforma na música feita por cristãos.

O “trovador de patilhas”, como a própria editora descreve Samuel Úria, confessava numa entrevista para uma tese académica, em 2017: “Eu, apesar de ser duma religião protestante evangélica, não sou evangélico na minha música, mas a minha música reflete naturalmente aquilo que eu sou. A minha preocupação quando estou a escrever canções é ser fiel.” E ensaiava um credo novo, ao recusar uma possível contradição entre os princípios do punk e a condição de protestante batista: “No final do século XX e início do século XXI, não há nada de mais anti-establishment do que uma pessoa falar abertamente das suas crenças e assumir-se dependente duma entidade superior. Nos nossos dias, possivelmente, este é o ato mais rebelde que se pode ter. E, por isso mesmo, é até olhado de lado, com alguma desconfiança. Embora isso hoje já esteja mais esbatido, a verdade é que eu próprio, durante algum tempo, senti bastante essa desconfiança. Portanto, não há nada mais punk, mais rebelde, do que remontar àquilo que, para muitas pessoas, é uma espécie de atitude e de ideário ultrapassados.”

Com Tiago Cavaco é um pouco diferente, mais prosélito. Tiago desce do púlpito da sua igreja para subir ao palco e converter os ouvidos de incautos e incréus. Apresentado, no seu perfil do Spotify, como um “pregador gospel do punk rock, falso tatuador, escritor português aspirante a americano, [que] começou a ensaiar as suas péssimas primeiras bandas grunge em 1992 [e] nunca mais parou. Em 1999 ele e alguns amigos criaram o selo FlorCaveira e desde então vêm fazendo discos, amigos e inimigos”. Haja fé. Como a que Samuel Úria professa: “As minhas questões de fé não são nem culturais, nem sociais. Eu simplesmente uso-as para fazer uma afirmação que julgo necessária.”

Talvez haja por aí alguma música dita católica que valha a pena, mas neste caso quis mesmo trazer-vos esta música que salta do púlpito para o palco, sem pedir licença, e entre a heresia e a ortodoxia nos põe a dançar e a pensar. E é isto que falta nas celebrações e missas católicas, como também nas iniciativas em que se pretende “passar uma mensagem”. Batam palmas na igreja.

 

Fotografia:
Músicos da FlorCaveira em palco (com Tiago Cavaco à direita).

*A editora define-se pelo mote “Religião & Panque Roque”. Fotografia da página de Facebook da editora.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.