É possível que esteja a exagerar e que este texto não passe de um desabafo enviesado de alguém que ainda não é velho e não é do Restelo. Mas este assunto parece-me demasiado importante para deixar passar.
Estou convencido que uma das razões pelas quais tem aumentado significativamente o desconforto interior em relação à vida é o facto de estarmos a perder a capacidade de narrar. Sim, refiro-me à capacidade de contar histórias.
Entendo por desconforto interior coisas como ansiedade, depressão, apatia, falta de sentido, etc. Este facto tem sido amplamente estudado e tem como sua origem principal (para dizer de uma forma simples) o smartphone. É muito mais prevalente entre os jovens, mas não me parece que haja muita gente imune àquilo que o smartphone tem de nocivo. A nossa crescente incapacidade para contar histórias é só um pequeno sinal deste problema maior, mas que, por ser muito subtil, passa muito despercebido.
O ser humano conta histórias desde sempre. Provavelmente desde que, há muitos milénios atrás, aprendeu a balbuciar as primeiras palavras. As histórias não são contadas somente para entreter crianças. Elas são lugares onde, simultaneamente, a vida se expressa e brota, autênticas fontes originais; são ‘maneiras’ de nos dizermos, ‘maneiras’ de compreender o mistério que a vida representa, formas de dar sentido ao que, à partida, não parece ter sentido. A narração tem um papel constitutivo na nossa vida, não é opcional.
Aquilo que tem acontecido nos últimos anos devido, sobretudo, à propagação do smartphone, com as suas infinitas funcionalidades, é que o tempo de atenção se foi reduzindo drasticamente. Não por falta de capacidade, mas porque empresas como o Facebook se aperceberam de que nós somos loucos por dopamina (neurotransmissor que quando libertado causa uma sensação de satisfação e recompensa) e começaram a jogar com os nossos cérebros. Os “gostos”, as notificações, o scroll infinito e os vídeos curtos são algumas das formas encontradas para nos mantermos hiper-estimulados e, digamo-lo sem rodeios, viciados.
É evidente que no meio desta festa dopamínica, a narração torna-se inútil: para quê andar com rodeios se podemos chegar à sensação de “final feliz” a cada seis segundos? É como ter o resultado sem ter de fazer o aborrecido processo para lá chegar. Vivemos extremamente entretidos. É que, ainda por cima, o conteúdo é virtualmente infinito e o sr. Algoritmo gosta imenso de nós e conhece-nos a fundo.
É provável que muita gente responda à pergunta feita acima com um redondo “para nada, deixemo-nos de rodeios”. Mesmo pessoas sensatas diriam sensatamente: “depois de um dia cansativo, de trabalho, o que eu quero é desligar a cabeça”. Tenho duas objecções, uma imediata e outra menos imediata.
A primeira é que, muitas vezes, já nem nos perguntamos se poderíamos usar o nosso tempo livre de outra forma que não seja com entretenimento. Dito de outro modo, não me parece que o tempo livre seja só tempo de descanso do trabalho, mas poderia ser tempo para fruir, para fazer silêncio, para investir nas pessoas que temos ao nosso lado, para criar, para ler, para digerir o que acontece na vida.
Continuamos a ter de aprender a olhar para tudo e não me parece que o entretenimento ajude muito a isto. Se de cada vez que paro e tenho tempo livre encho os olhos de conteúdo, é provável que continue a ter o olhar gasto.
A segunda objecção é mais séria. Tenho a impressão de que o desconforto interior em relação à vida vem, sobretudo, de termos desaprendido a viver. Há um desencontro entre aquilo que se passa no meu smartphone e a minha vida. No meu smartphone as coisas são imediatas, existe uma sensação de recompensa instantânea, estou a ser continuamente estimulado, há sempre mais para ver, há uma sensação de que sou visto e olhado e apreciado por muita gente, existe a sensação de não estar sozinho nunca…
Tenho a impressão de que o desconforto interior em relação à vida vem, sobretudo, de termos desaprendido a viver. Há um desencontro entre aquilo que se passa no meu smartphone e a minha vida.
Na minha vida as coisas são muito diferentes: crescer demora muito tempo, cair é um risco muito real, tão real que, de facto, caio; existem subidas e descidas, as coisas são complexas e exigem trabalho, os resultados são, umas vezes, tímidos, outras vezes, demorados; sou confrontado com a solidão, sou confrontado com o facto de não controlar tudo ou de controlar muito pouca coisa… Claro que aquilo que é real para o duro, é real para o alegre, para o belo, para o agradável.
Mas, sobretudo, é real! E mais, é história, é a minha história. E a minha história inclui tudo isto porque ainda a estou a narrar. E não vou ficar frustrado ou desesperado ou deprimido quando aquilo que tenho à minha frente para viver é duro, porque sei que é parte de um processo longo, é parte de uma história que ainda não acabou, é mais um passo do caminho que me levará a algum sítio.
Se desaprendemos a narrar, corremos o risco de desaprender a viver. A vida pode tornar-se um fardo insuportável porque inevitavelmente terá momentos de subida, de transição, de começo, de luta, de crescimento, de queda, que entram em claro confronto com aquilo que o nosso smartphone proporciona e impõe.
Não é por acaso que o Papa Francisco escreveu uma carta sobre o papel da literatura na educação. A narração de histórias funciona como um espelho porque nos fala do interior da vida: da sua beleza, das suas tensões, do seu significado, dos seus desejos, da sua dor. Com este contar de histórias aprendemos a narrar-nos, aprendemos o tempo que precisamos para dar passos, aprendemos a olhar para a complexidade e para a simplicidade, aprendemos a lidar com as nossas contradições e com o inesperado, aprendemos a acolher e a amar o que temos à frente dos nossos olhos. Aprendemos a não viver simplesmente para chegar. Aprendemos que o processo é tão importante como o resultado. Aprendemos a não viver de “finais felizes”.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.