Quando pensamos nos «marginalizados», em quem pensamos? Podemos pensar em periferias geográficas. Podemos pensar nas pessoas que vêm dessas periferias, todos os dias, para fazer a limpeza dos escritórios e casas do centro da cidade, a troco de um baixo salário e pouco prestígio social. Podemos pensar, dentro da cidade, nos bairros que ninguém quer frequentar, porque há pobreza e desconfiança. Podemos pensar nas pessoas que não são contratadas ou a quem não é arrendada uma casa por causa de um preconceito qualquer – e que depois têm de ir viver para esses bairros onde ninguém quer entrar. Podemos pensar nas mulheres, tantas vezes postas de lado das decisões. Podemos pensar nas gerações mais velhas, muitas vezes abandonadas pelas suas famílias e pela comunidade. Podemos pensar em quem vive no interior e não tem acesso aos serviços básicos. Podemos pensar no migrante que não tem documentos, é explorado na agricultura e vive em contentores no meio de um latifúndio perdido. Podemos ainda pensar na face mais invisível das nossas sociedades: nas prisões.
Esta pergunta evoca muitas imagens, mas nos tempos que correm falar em «marginalizados» é perigoso. É perigoso porque muitos acusarão esta palavra de um peso que divide e causa ressentimento na sociedade. Portanto é melhor abandoná-la, abandonar «o discurso dos coitadinhos», como muita gente diria. Algumas pessoas que se queixam deste discurso até parecem ter medo de elas própria começarem a ser «marginalizadas» – medo infundado porque não se apercebem do privilégio que é ter-se sequer uma voz para expressar medo. A reactividade a esta palavra é tão grande que a actual Administração norte-americana já a incluiu numa lista de palavras proibidas que não podem ser usadas na investigação e escrita académica. Porque é que esta palavra e outras semelhantes incomodam?
Porque, de facto, ela espelha o mundo em que vivemos. E a realidade, que é maior que as ideias, é injusta, e isso é inquietante para qualquer pessoa, mesmo para aquelas que tentam tapar o sol com a peneira. Contudo, também haverá um fundo de verdade em quem reage mal ao discurso dos «marginalizados»: é que o diagnóstico das injustiças em si não deve ser o fim, mas o começo da construção da boa sociedade que queremos. Além disso, quando usamos as categorias sociais que são muito necessárias para esses diagnósticos (e.g. a mulher, o negro, o recluso) há um perigo em perdermos de vista o ser humano como ele é, único, irrepetível e aberto à transcendência – cada um de nós tem um nome, uma história e uma vocação singular! Uma pessoa é sempre muito mais do que uma categoria social, tal como um aluno ou um trabalhador é mais do que um número.
Quando usamos as categorias sociais que são muito necessárias para esses diagnósticos (e.g. a mulher, o negro, o recluso) há um perigo em perdermos de vista o ser humano como ele é, único, irrepetível e aberto à transcendência – cada um de nós tem um nome, uma história e uma vocação singular!
Neste sentido, a proposta da Doutrina Social da Igreja, que sempre teve um discurso sobre «as margens», compreende bem esta complexidade.
A dignidade da vida humana, de onde emanam todos os princípios da Doutrina Social da Igreja, implica que nenhuma pessoa possa ser instrumentalizada para quaisquer fins e que todos temos uma «radical igualdade» nessa dignidade, assente na singularidade, e independentemente de quaisquer características que tenhamos ou da nossa história pessoal. Com essa igualdade em dignidade temos também direitos iguais. Por isso, as instituições sociais devem estar ordenadas para servir a pessoa humana e não o contrário. Como se entende, então, a título de exemplo, que vivamos pacificamente, em Portugal, com a prática de tortura nas prisões, como veio a público com a acusação do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos? E a nível global, como podemos aceitar o aumento do discurso justicialista que pretende aplicar trabalhos forçados aos condenados? Porque é que isto não é tema no comentário político? As prisões não dão votos. E, no entanto, elas poderiam ser a prova de algodão das sociedades, do quão a sério elas levam esta ideia da igualdade em dignidade.
Na Comunidade Rupert Mayer, um dos vários textos que lemos sobre este assunto intitula-se “The Impossible Possibility of Forgiveness”, de Walter Brueggmann. Nesse texto o autor faz uma proposta absolutamente revolucionária: E se olhássemos para as injustiças na nossa sociedade com a lente do perdão? Ora veja-se: Quem fica para trás na economia de mercado e é pobre é porque não é produtivo o suficiente, azar, não há segundas oportunidades; quem cometeu um crime deve ser punido, fim da história; quem não se manifesta como bom cidadão deve ser imediatamente cancelado; esta pessoa é cigana e cigano é ladrão, e não há como perdoar pelo que «eles» fizeram à minha família, etc. Como chegámos a este ponto de sermos uma sociedade tão ímpia? Até se olharmos para o Antigo Testamento, onde Deus é habitualmente visto como «vingador», como diz Brueggmann, vemos que na verdade Deus perdoa para lá das consequências das nossas acções ou das acções do nosso povo.
É só com esse perdão incondicional que podemos construir a sociedade que queremos mais profundamente. Diz Brueggmann: nos versos de Isaías, «podemos ter em vista uma nova Jerusalém, uma nova ordenação urbana do poder social em que ‘ninguém fará mal nem destruirá em todo o meu santo monte’, isto é, em Jerusalém. Uma economia urbana não perdoada irá sistematicamente ferir e destruir de forma programática. Mas não agora! Porque a novidade urbana é possível!»
E se puséssemos o perdão no centro da vida social e política? [nota 1]
Nota 1 – Agradecemos à Sónia Monteiro, que nos sugeriu este texto de Walter Brueggmann.
Nota 2- o autor escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.