Se tu me dizes: «Mostra-me o teu Deus», eu posso responder-te:
«Mostra-me o homem que há em ti, e eu te mostrarei o meu Deus».
Mostra-me, portanto, como vêem os olhos da tua mente
e como ouvem os ouvidos do teu coração.
S. Teófilo de Antioquia
Celebraremos, no dia 11 de novembro de 2021, duzentos anos do nascimento do escritor russo Fiódor Mikhailovitch Dostoiévski. Formado em engenharia, Dostoiévski virou a página da sua vida, dedicando-a quase inteiramente à escrita. Nascido na terra dos ícones, o autor russo não é apenas um escritor de textos. Podemos considerá-lo, verdadeiramente, um escritor de ícones.
Curiosamente, para os cristãos eslavos, os ícones não são pintados mas escritos. Várias razões os movem a esta afirmação, mas a principal é a seguinte: a Palavra de Deus, encarnada na pessoa de Jesus Cristo, já não se pode limitar a uma escritura sem forma humana. A palavra é pessoalmente visível nos ícones. E os ícones não são fotografias! São janelas para a mesma Escritura que lhes dá alma e ser profundo.
Este “efeito icónico” — como lhe chama François Dagognet — de transformar factos em diagnósticos de atitude, é uma realidade viva nos livros de Dostoiévski. Por razão desta profundidade, o escritor russo influenciou a maior variedade de pessoas. Crentes e não crentes, teólogos, filósofos, psicólogos, dramaturgos, pintores, músicos, cineastas, etc. Por causa desta finura na escrita, é conveniente perguntar: volvidos duzentos anos do seu nascimento, que pode ainda dizer-nos Dostoiévski?
Pessoalmente — e esta será a tese deste texto — imagino a escrita de Dostoievsky como análoga à palavra de S. Paulo em Atenas. Diante das múltiplas estátuas de divindade fragmentada dos atenienses, o apóstolo foi capaz de intuir um louvor escondido ao Deus desconhecido (Cf. Atos 17). De modo análogo, Dostoievski foi capaz de pregar a pessoa desconhecida que vive adormecida no profundo de tantos estereótipos fragmentados do ser humano que habitam a nossa publicidade, a nossa política e até a nossa religiosidade. Por outras palavras, o escritor russo foi capaz de atravessar as máscaras fragmentadas e penúltimas sobre a pessoa humana e apontar para uma imagem mais desconhecida que procura encontro e redenção profundos. Olharemos brevemente para três personagens do livro Crime e Castigo para considerar a validez desta tese.
1. Marmeladov e a arte de aprender a bendizer a complexidade
É num certo dia de Julho que, em São Petersburgo, começa a história do Crime e Castigo. Um jovem pobre, ex-estudante, de seu nome Raskolnikov, sai do apartamento miserável e preocupado. Atormentado, deambula pelas ruas, atraído pela ideia de melhorar após comer e beber alguma coisa, nalguma taverna. Aí conhece Marmeladov, um militar aposentado e um pobre bêbado.
Marmeladov é aquilo a que podemos considerar um caso perdido. Um alcoólatra incorrigível, expulso de casa pela sua exigente esposa Katerina Ivanovna. Dos seus quatro filhos, a mais velha, Sónia, teve que se prostituir para conseguir dinheiro para ajudar a criar os irmãos mais pequenos e a pagar as muitas dívidas de seu pai. Numa larga conversa, oscilando entre a embriaguez e a lucidez, Marmeladov professa a sua fé diante de Raskolnikov:
“Achas tu, taberneiro, que esta tua garrafa me foi doce? O que eu procurei foi a dor, sim, a dor, no fundo da tua garrafa, a dor e as lágrimas, e tive-as e saboreei-as; e terá pena de nós aquele que teve pena de todos que a todos e a tudo compreendeu, porque ele é uno, ele é o juiz. Nesse dia ele virá e perguntará: “Onde está a filha que pela madrasta má e tísica se entregou, pelos filhos alheios e menores? Onde está a filha que teve piedade do seu pai terreno, bêbado depravado, sem se horrorizar com a sua figura animal?” E dirá: “Vem! Já te perdoei uma vez… Perdoei-te uma vez…. E agora os teus muitos pecados serão perdoados porque muito amaste…” E perdoará à minha Sónia, perdoará, sei que perdoará… Ainda há pouco, quando fui a casa dela, senti-o no coração! Julgará a todos e a todos perdoará, bons e maus, sábios e humildes… E quando acabar de julgar a todos, clamará também para nós: “Vinde – dirá —, vinde também vós! Vinde, bebedolas, vinde, fraquinhos, vinde, desavergonhados!” E sairemos todos, sem nos acanharmos, e compareceremos perante ele. E ele dirá: “sois uns porcos! Tendes a imagem da besta e o selo dela; mas vinde também!” E dirão os sábios, e dirão os sensatos, e dirão os justos: “Senhor!, porque os aceitas?” E ele dirá: “Aceito-os, ó sábios, aceito-os, ó sensatos, porque nenhum deles se considerou digno disso…” E estender-nos-á as suas mãos e apegar-nos-emos a elas… e choraremos… e compreenderemos tudo! Compreenderemos então tudo!… e todos compreenderão… Senhor, venha a nós o vosso reino!»
Diante de uma indigência tão gritante, Dostoievski poderia conduzir-nos a pensar, por um lado, que uma sociedade sem valores está perdida ou, por outro, que as condições sociais da Rússia de então forçam este destino sobre os mais indefesos. Nenhuma destas visões está inteiramente errada. Mas o escritor de ícones opta por apontar para algo mais profundo; ousa contemplar com mais detalhe, sem se deter num espírito de sistema, que fragmenta e decompõe. Antes, propõe uma visão mais completa, um exercício literário de bendizer o que é em relação e não pode ser separado: a indigência de Marmeladov e a sua esperança cheia de brilho. Diante desta sinfonia agridoce, como cantaram os The Verve, somos tocados pela indigência como Francisco de Assis ao beijar leproso, reconhecendo a pessoa escondida. Apetece chegar a exclamar com Santo Agostinho: “ó feliz culpa”, ó maravilhosa indigência que nos mereceu reconhecer a pessoa escondida!
2. Raskolnikov e a denúncia do imaginário encurvado sobre si
A fé não se reduz a uma linguagem nem se deixa confinar a um referente moral, se bem que ambas são determinantes. A fé, como bem nos recorda Charles Taylor, está também comprometida com o imaginário humano. O imaginário pode ser brevemente definido como a teia de relações de sentido que trabalhamos e repetimos na nossa imaginação, a ponto de canonizar uma ou várias narrativas, capazes de vindicar certos comportamentos e possibilidades mais do que outros.
O jovem Raskolnikov, incapaz de se livrar das suas dívidas e ajudar a sua pobre mãe, começa a tingir o seu imaginário com possibilidades sombrias e rocambolescas. Deseja um renascimento que o faça tornar-se num homem que não se deixa constranger pela lei mas antes se torna dador de lei para os outros. Encurtando a história e sem ser spoiler, Raskolnikov comete um grave crime por desejar identificar-se com essa figura napoleónica que se reconhece acima dos outros por ser capaz de definir por si próprio onde está a linha que distingue o bem do mal. Seguindo este imaginário encurvado sobre si próprio, Raskolnikov começa a experimentar o remorso e o sentido de culpa, emergindo dentro dele como um outro dentro de mim — como diria Racine.
Uma vez mais, a visão sesgada podia-nos levar a dizer, por um lado, que finalmente emergiu no jovem estudante a voz da consciência ou, por outro, que Raskolnikov não conseguiu libertar-se, como pretendia, das suas referências de culpa moral e religiosa. Em ambas as visões, a consciência aparece como expressão do limite apontado de cima para baixo: não faças! A visão paternalista e altiva da consciência diante do interdito.
Mas Dostoievski não pára nesta estação! Diante destas visões parcelares da consciência, vendo-a altiva e despótica, arrojando o “bem” na cara dos instintos napoleónicos do estudante indigente, o escritor russo aponta para uma outra visão. A consciência de si emerge na conversação; não com o gurú mais esclarecido, mas no encontro com uma prostituta de força nas mãos e “peito fraquinho”.
— Onde está a passagem sobre Lázaro? — perguntou de repente [Raskolnikov].
Sónia tinha os olhos cravados no chão e não respondeu. Não estava de frente para a mesa, mas de lado.
— Onde está a passagem de Lázaro? Encontra-ma, Sónia.
Olhou para ele de soslaio.
— Não é onde está a procurar… é no quarto evangelho… — sussurrou severamente, sem se aproximar dele.
— Procura-a e lê-ma — disse Raskolnikov, e sentou-se, de cotovelos assentes na mesa, a cabeça apoiada numa mão e, fixando o olhar num ponto que não ela, preparou-se para ouvir.
Pouco a pouco, ao longo da narrativa, Raskolnikov vai-se encontrando com a figura de Lázaro — o morto ressuscitado por amor. A consciência deixa de aparecer como imperativo categórico, paternalismo altivo e negacionista, para emergir desde baixo, na relação com aquela que aparentemente não tem nada a oferecer, mas que ensina o estudioso falido a ler, a ler-se, a recobrar a inteligência de si — o tal in-te-leggere de que falava Charles Péguy. Mais do que uma voz de proibição, som fragmentado e altivo que vem de nenhures, Dostoyevsky aponta para a consciência como algo maior, sempre desconhecido e revelado na relação. Na relação com Sonia, a consciência não é apenas o não à figura napoleónica que habita o imaginário de Raskolnikov. Vai-se tornando progressivamente no reconhecimento de que o remorso não era mais do que a ponta do iceberg de um convite infinitamente maior: dizer sim à possibilidade de ser um outro Lázaro, redimido no amor. Mas que amor?
3. Houvesse apenas uma Sónia para nos salvar, e começaria a outra história
Volvidos os anos, encontramos Raskolnikov numa prisão na Sibéria. Fatalidade? Essa é a imagem parcelar de que Dostoievski nos quer libertar — como quem acena com a mão para afastar da frente do rosto as moscas da aparência. Para chegar à Sibéria, o jovem estudante admitira já a sua culpa e o seu fracasso, entregando-se às autoridades. Um drama policial poderia acabar aqui! Um simples romance faria Raskolnikov sair da prisão, encontrar Sónia e terminava com os votos do casamento. Mas os ícones não são fotografias! Dostoievski quer levar-nos mais fundo.
Para começar, Sónia foi com ele para a Sibéria, ajudando-o e cuidando-o em tudo o que podia. Mas Raskolnikov, apesar das mudanças externas, continuava praticamente igual! Procurou mudar os seus referentes morais, mas o seu imaginário era ainda napoleónico. Seguramente que seria um belo modelo do Napolean Complex do grupo inglês The Divine Comedy. A música faz paródia com aqueles que afirmam a sua prepotência para compensar a sua sensação de serem pequenos. Do mesmo modo, Raskolnikov, ainda preso às imagens fragmentadas do seu passado, trata Sónia com altivez, é áspero para com as suas delicadezas, despreza os seus companheiros na prisão, acha que todos lhe querem mal.
Poderíamos ficar exasperados com o estudante pobre e mal agradecido. Mas a história não acaba aqui. Subitamente, o medo de perder a Sónia, rolou a pedra do sepulcro do jovem estudante, manifestou-lhe a pessoa desconhecida que ele ainda poderia ser:
Quiseram falar, mas não lhes foi possível. Havia lágrimas nos seus olhos. Estavam ambos pálidos e abatidos; mas naqueles rostos doentios e pálidos brilhava já a aurora de um renovado futuro, de uma plena ressurreição para uma nova vida. O amor ressuscitava-os, o coração de um encerrava infinitas fontes de vida para o coração do outro. (…) Nesse dia até se lhe afigurava que todos os presos, que antes tinham sido seus inimigos, o olhavam já com outros olhos. Até falava com eles e lhes respondia afetuosamente. (…) Pensava nela. Lembrava-se de como a mortificara continuamente, destroçando-lhe o coração; recordava o seu rostozinho pálido, mas, agora, essas recordações quase não o afligiam; sabia com que infinito amor ia recompensar agora as suas dores. E que eram agora todos, todos aqueles sofrimentos do passado? Tudo, até o seu crime, até a sua condenação e deportação lhe pareciam agora, nesta primeira exaltação, um fato exterior, alheio, como se não tivesse relações com ele. (…)
Tinha o Evangelho debaixo da almofada. Pegou-o maquinalmente. Aquele livro era dela, pois era o mesmo em que ela lera a passagem da Ressurreição de Lázaro. Nos primeiros tempos do presídio pensava que ela havia de importuná-lo com a religião e que se poria a falar do Evangelho e a aborrecê-lo com o livreco. (…) Mas ocorreu-lhe um pensamento: “Poderia, por agora, a sua crença, não ser a minha também? Pelo menos os seus sentimentos, as suas aspirações…”
Para se deixar transformar, não bastava acusar-se por palavras e adoptar um código moral decente. O imaginário precisava de se encarnar, como amor, nesse outro que ensinava Raskolnikov a ler-se e a navegar o mais profundo de si. Com Dostoievski, o religioso torna-se em religare no seu sentido mais absoluto — o religar de relações com Deus, dentro de si e com outros, cada um dos vértices potenciando o outro.
Concluindo para abrir uma outra narrativa
Talvez, ao fim de duzentos anos, Dostoievski nos possa ensinar que há um caminho possível. Não o caminho de quem rejeita a indigência como fragmento infeliz do que é ser humano. Mas antes o caminho de quem vê no outro, mesmo no que aparentemente não tem nada para me ensinar, aquele que me ensina a ler quem sou, acolhendo a minha indigência como caminho para descobrir a pessoa desconhecida que sou.
Mas aqui começa já uma nova história, a história da gradual renovação de um homem, a história do seu trânsito progressivo dum mundo para outro, do seu contato com outra realidade nova, completamente ignorada até ali. Isto poderia constituir o tema duma nova narrativa… mas a nossa presente narrativa termina aqui.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.