Em França, conheci um jesuíta que era muito procurado para o acompanhamento espiritual. Muito profundo, este homem era também dotado de um enorme sentido de humor e perspicácia. Certo dia, desabafava dizendo: «Há pessoas que têm o hábito de começar as conversas dizendo “vou partilhar consigo a minha vida espiritual”. Quando me dizem isso, reajo. “Desculpe, não sei do que está a falar. Fale-me simplesmente da sua vida e logo veremos o que ela tem de espiritual”». Penso que esta ideia se pode aplicar facilmente à música e à sua relação com a fé. Para ser espiritual, a música não precisa de tratar de temas religiosos: precisa, isso sim, de tratar da vida. Numa altura em que se multiplicam (e bem!) os festivais de verão, e com cartazes óptimos, talvez valha a pena deixar duas notas sobre o modo como a música nos pode tocar por dentro. Para isso, usarei dois exemplos, ambos de músicos ‘maduros’.
NINA SIMONE. A música como urgência
Chamem-me «clássico», mas continuo a achar que a Nina Simone tem qualquer coisa… Aquela voz quente, muitas vezes rouca, habitualmente desafinada, mas sempre arrebatadora; a sua forma de cantar com o corpo, de ser cantora, e actriz, e vulcão, e choro, e ritmo, tudo no mesmo palco; a beleza violenta dos seus versos. Sim: a Nina tem qualquer coisa. Não me interessam rankings: não preciso que Nina seja a melhor do seu bairro; basta-me que seja Nina. A cada um o seu espaço e a sua medida.
Tendo crescido no meio de música, habituei-me a partilhá-la com amigos. Há tempos aconteceu-me mostrar um excerto de um concerto de Nina (do Festival de Montreux, em ‘76) a uns amigos. «Feelings – começou ela – nothing more than feelings». O rosto tenso, quase trágico, as palavras silabadas. A música pára e Nina vira consciência. Esquecemo-nos de como é «sentir amor», diz ela. E continua: «Que vergonha termos que escrever uma música assim… Eu não acredito nas condições que produziram uma situação que exigiu uma música como esta». E de repente, sentimos uma alfinetada. Há coisas que exigem música; há músicas que nos saem de uma urgência, de um grito, de uma impossibilidade de permanecermos indiferentes. Que Nina chore as suas perdas torna-se um problema comum, como um sentimento partilhado de revolta perante uma injustiça insuportável. Já não é só Nina que chora: somos todos nós. A música pode ter esse condão de nos fazer sentir (com) os outros.
GAVIN BRYARS. A música como peregrinação
Em 1971, Gavin Bryars, compositor e contrabaixista de jazz inglês, tropeçou com uma gravação de um sem-abrigo que cantava uma melodia simples: «Jesus’ blood never failed me yet. This one thing I know, for He loves me so» (O sangue de Jesus nunca me deixou ficar mal. Disto estou certo, porque Ele ama-me muito). Ao ouvir a música, Bryars deu-se conta de que ela tinha uma estrutura regular que poderia facilmente ser tocada em contínuo; a isso, o compositor decidiu juntar alguns pequenos arranjos instrumentais. O resultado é comovente. A voz é trémula, as palavras repetem-se, os instrumentos vão surgindo progressivamente. Este conjunto de vulnerabilidade e repetição sugere-nos a ideia de caminho. Vamos avançando, progressivamente; as notas são a nossa vida. Portanto, esta música é uma peregrinação.
Certas músicas devolvem-nos a capacidade de sentir o mundo, a vida, os outros. Outras vão-se entranhando em nós como bálsamos, transformando-nos lentamente. Que urgências e que peregrinações estão ainda por explorar nesses festivais?
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.