Diversidade, pluralismo e identidade

Uma só pertença não nos pode caracterizar, até porque o “homem unidimensional” não permite fazer compreender a humanidade.

Quem somos? O que nos distingue uns dos outros? Qual o significado dos sentimentos de pertença? Numa sociedade aberta e pluralista, as referências são diversas e complexas e o que temos de entender é quais os elos capazes de caracterizar quem somos e de influenciar o que fazemos. As simplificações são, assim, enganadoras — como sempre foram. Uma só pertença não nos pode caracterizar, até porque o “homem unidimensional” não permite fazer compreender a humanidade, limitando-se a dar uma caricatura insuscetível de definir um traço capaz de caracterizar algo que, delimitando as fronteiras dentro das quais se desenvolve a ação, funcione como catalisador, como mobilizador ou como motor de afirmação ou de emancipação.

Se Ortega y Gasset nos alertava para a necessidade de compreendermos as circunstâncias em que nos inserimos, como janelas abertas ao mundo e à ação, também nos obrigava a superarmos a perspetiva empobrecedora do homem-massa. Em ambos os polos, desde o híper-egoísmo individualista à dissolução na multidão uniforme, devemos entender que a pluralidade de pertenças e que a aspiração universalista e cosmopolita à “vida digna” põe-nos perante o necessário equilíbrio entre o atomismo e a emergência da massa uniforme. Somos sempre várias referências, várias pertenças e várias atitudes e valores. Ainda que uma identidade que assumimos seja normalmente muito marcada, a verdade é que procuramos sempre uma síntese que parta da situação concreta e da particularidade para uma visão universalista. A História é sempre feita de movimentos centrífugos e centrípetos e nós, atores e figurantes, determinantes e determinados, criadores e criaturas, somos o resultado e a síntese que decorre desses encontros paradoxais.

É sabido que a cultura é uma realidade dificilmente definível. Referimo-nos à superação do estado de natureza, segundo uns, como se estivéssemos perante o fator que distingue o caos e o cosmos sociais, ou à realização da própria natureza de acordo com outros. O certo é que nos situamos normalmente na convergência entre fatores unificadores e fragmentários. Fala-se da sociedade culta como sociedade cultivada, mas fala-se também da cultura popular e de cultura erudita ou de um conceito étnico de cultura e de “cultura-aprendizagem” da sociedade educativa. A reflexão da cultura e da natureza pode ser vista, assim, à luz de diversas perspetivas, uma vez que a pessoa humana se afirma de várias maneiras.

Cultura, no sentido etimológico tem a ver com o cultivar da terra e com o semear e o colher, mas, ao longo do tempo, passou a ter um sentido de culto e de “construção” (bildung) e passou a ligar-se ao próprio processo transformador da humanidade. Cultura e educação completam-se, a paideia grega e a humanitas latina significam o caminho de cada um se assumir como pessoa.

Há, pois, um primeiro fator na procura da identidade que é a busca de nós e dos outros na dignidade humana, a busca como fator de diferença e de pluralidade, e como apelo ao universalismo. A cidadania inclusiva dos nossos dias, a cultura dos direitos fundamentais, as responsabilidades cívicas, o capital social — tudo isso nos obriga a projetar, para além do isolamento egoísta, a defesa da pessoa humana. Dir-se-á, porém, que a pessoa não pode ser compreendida sem a comunidade concreta em que se insere, sem a pertença e sem os laços que a ligam aos outros membros desse grupo de proximidade. Sem dúvida que assim é, no entanto, não se trata de pôr primeiro a comunidade ou o indivíduo, mas de considerar a pessoa (“o outro que era eu”, de Ruben A.) como ponto de encontro entre o universalismo da dignidade e a diferença das várias pertenças — em lugar do primado das ligações à comunidade numa lógica exclusiva — e aqui a exclusividade significa exclusão, de que temos de nos demarcar. A cidadania dos antigos era, de facto, exclusiva, porque não reconhecia o direito de todos e porque não ligava igualdade e diferença.

A cultura é, assim, considerada como um lugar de encontro entre o que recebemos das gerações que nos antecederam, o património construído e o património imaterial, os monumentos e as tradições, as pedras mortas e as pedras vivas, e o que criamos — o valor acrescentado que as novas gerações criam, a inovação, a experiência e a aprendizagem — lembrança, memória, inovação. A cultura é, assim, sementeira e construção, tradição e contemporaneidade, aprendizagem e transmissão de saberes, conhecimento e compreensão — receção e aspiração. Afinal a “destruição criadora” corresponde à dinâmica de criar, de substituir e de completar. Ao falar de cultura temos, por isso, de falar de memória, não da memória que conduz ao ressentimento, mas da memória que permite criar condições para o respeito e para a compreensão. Em lugar do excesso da memória deve cultivar-se a memória equilibrada e justa.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.