Que sucede quando Deus nos diz para irmos por um lado e nós desobedecemos e vamos por outro?
Vem-me à cabeça uma situação que me aconteceu da última vez que guiei um carro com um GPS falante. Estava numa cidade estrangeira, num bairro cheio de pequenas ruas. A voz disse para eu virar mas eu estava distraído e não virei. Imediatamente recebi a ordem: “Fazer inversão de marcha”. Tentei mas estava um trânsito enorme e não conseguia. “Fazer inversão de marcha”, repetiu a voz. Para além do trânsito havia chuva. Não consegui.
Continuei em frente, aflito por ter saído fora dos planos e ter estragado tudo. A voz calou-se. O seu silêncio pareceu-me uma eternidade. Eu não sabia sequer onde estava. Então a voz fez-se ouvir de novo e disse algo como “Recalcular rota”. Em poucos segundos um novo trajecto apareceu no mapa do GPS. E a voz voltou ao seu “daqui a 200 metros”, agora segundo o novo trajecto. (E sem o mais ligeiro tom de reprovação!).
E Deus? Tem “planos B”? Ou seja: quando falhamos o caminho, quando seguimos por uma direcção errada, será que Ele tem “planos B” a partir do ponto (errado) em que agora nos encontramos (por culpa nossa)? Recalcula a rota?
Tomo como adquirido que Deus primeiro tenta sempre que façamos inversão de marcha. Mas nem sempre é fácil… Às vezes já não dá, a asneira já fez trajecto. Será que então aí Deus tem uma nova rota? Em relação a esta questão, tenho ouvido duas opiniões opostas:
Opinião 1 – Quando estragamos o caminho que o Senhor nos aponta, o caminho ficou estragado. Frustrámos o sonho de Deus e nem Ele pode fazer nada… Deus não tem “planos B”.
Opinião 2 – Claro que Deus tem “planos B”! E tem também planos C e D… Com Deus é sempre tempo para recomeçarmos. Devemos tentar acertar mas não há nenhum problema grande quando seguimos por outro caminho.
Qual das 2 hipóteses parece mais acertada? (Escusado será dizer que são ambas “modelos”, “maneiras de falar”, já que a realidade de Deus e da Sua acção está muito acima da nossa capacidade de a “explicarmos” a partir das nossas experiências e capacidade).
Não concordo com a Opinião 1. A Bíblia está cheia de exemplos de pessoas que seguiram caminhos contrários ao da vontade de Deus e, no entanto, Deus seguiu viagem com eles nesse novo caminho. Logo a começar com Adão e Eva que desobedeceram (a história do fruto que Deus lhes proibira comer). Certamente Deus tem “planos B”.
Mais: quando agimos contra a Sua vontade, Deus não só não nos abandona mas ainda – quando nos arrependemos – nos ajuda a tirar partido disso para caminharmos melhor. É o perdão, essa Graça maravilhosa que Deus dá e que permite tirar “mais” do “menos” e fazer-nos recomeçar. É assim na Parábola do Filho Pródigo e nas nossas vidas. O perdão é a Graça para o recomeço. O perdão é a oferta permanente de um “plano B”.
Talvez Deus até só tenha “planos B”! Ou pelo menos devemos dizer que, se Deus tem planos para nós, deve passar a vida a refazê-los pois constantemente fazemos escolhas contra a Sua vontade. Deus está permanentemente a recalcular a rota a partir do ponto onde realmente nos encontramos, diferente do ponto onde nos deveríamos encontrar. (Para quem ama, o ponto onde se encontra a pessoa amada é muito mais importante que qualquer outro ponto – mesmo que “ideal” – sobre a face da terra…)
Não concordo, por isso, com a Opinião 1. Por outro lado, também não sei se estou totalmente de acordo com a Opinião 2 quando diz que não há nenhum problema grande quando (livremente) vamos contra o que Deus nos pede. Ainda que Deus perdoe sempre, ainda que nos queira dar tudo para podermos recomeçar, parece-me que nós, por vezes, O conseguimos deixar de mãos atadas. Deus faz tudo o que pode por nós… dentro do espaço de manobra que Lhe damos. Aqui é que está a questão…
Vamos a um exemplo concreto. Quando senti o chamamento para ser jesuíta, um homem que eu não conhecia ouviu falar de mim e pediu-me para eu escutar o seu caso. Em mais novo ele tinha sido seminarista. Parece que até se estava a sentir bem mas um dia apareceu uma rapariga… Provavelmente não tinha muita experiência de namoradas e, de um impulso, sem muita ponderação, deixou o seminário. Casou-se mas não foi preciso esperar muito tempo para perceber que tinha feito asneira. A sua vocação era mesmo a de ser padre.
Quando me contou a sua história já tinham passado muitos anos. Continuava casado com a mesma mulher. Tentava ser o melhor marido e o melhor pai que conseguia. Mas confessou-me que não era feliz. A sua vida teria sido a outra…
Fiquei sempre com este homem bom na minha cabeça e no meu coração. Tinha consciência que tinha estragado a sua felicidade e a dos que o rodeavam e quis prevenir-me. Nem me conhecia, apenas soube que eu ia começar o caminho que ele tinha abandonado 20 anos antes. “Talvez o sacerdócio nem seja a sua vocação – disse-me ele – mas não saia assim de repente como eu saí”.
Creio que somos hoje ingenuamente optimistas em relação a nós mesmos e em relação à vida. Achamos que está sempre tudo em aberto para ser revisto e recomeçado, quaisquer que sejam as opções que fizemos. Achamos que podemos sempre voltar ao ponto de partida e ser o que éramos antes da viagem. Acho esta ideia muito ingénua. As nossas opções entretanto fizeram história, criaram ligações, responsabilidades, tiveram as suas consequências, abriram ou fecharam possibilidades para o nosso futuro… Enfim… deixaram-nos em lugares diferentes dos lugares em que estávamos antes. Piores ou melhores; mas certamente diferentes.
E, ao longo do caminho, nós próprios ficámos pessoas diferentes devido às atitudes que fomos alimentando: pessoas mais livres ou mais mesquinhas, mais altruístas ou egocêntricas, pessoas com fé ou à defesa, generosas ou calculistas, pessoas mais humanas ou mais desumanas… As nossas decisões não decidem só a estrada que fazemos; decidem também as pessoas em que nos tornamos. Quando, no estrangeiro, meti pela rua errada, as consequências foram apenas uns minutos de atraso. Indiferente. Mas na vida nem sempre é assim. O homem que veio falar comigo tinha perfeita consciência disso. Por isso é que veio falar comigo.
Creio firmemente que a vontade de Deus coincide sempre com o nosso maior bem e que procurar fazer o que Lhe agrada (seja casar, seja ser padre, seja o que for nas pequenas e nas grandes coisas) é sempre a opção mais inteligente quando temos de tomar decisões.Digo “procurar” e não “fazer” porque muitas vezes nem sabemos bem o que é o melhor e por onde passa a vontade de Deus. Nem Deus nos pede que acertemos; pede-nos apenas que o tentemos fazer de todo o coração. Com essa nossa generosidade e boa vontade, Ele fará tudo o resto. E até poderá “escrever direito por linha tortas”, como diz o povo. Vezes sem conta. Ou seja: Deus tem sempre “planos B”. Para Ele, hoje é sempre o primeiro dia das nossas vidas. Mas não escreve por nós a nossa história.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.