Desempoeirar «salvação» e «sacrifício» – de Harry Potter ao Universo Marvel

O sentido profundo que as palavras «salvação» e «sacrifício» apontam abunda em narrativas contemporâneas de grande sucesso, seja em séries como "Squid Game" ou "Lost in Space", ou nas sagas "Harry Potter" ou "Avengers".

O passar do tempo tende a cobrir as palavras com pó. É natural que isto suceda quando deixamos palavras intocadas sobre a mesa. Mas o pó também assenta sobre palavras manuseadas com resistência, palavras às quais impedimos um enriquecimento de significado por lhes vedarmos o acesso ao tempo presente. São «palavras noz», palavras que, à semelhança do fruto que lhes dá nome, se encontram poeirentas, palavras que urge não só desempoeirar, mas às quais é necessário partir a casca para que possamos saborear a semente no seu interior.

Duas dessas «palavras noz» são «salvação» e «sacrifício». Ambas caíram em desuso, por excesso de herança ou défice de imaginação. Salvação, num sentido proto-secular, pode-se definir como a busca do bem e da justiça para todos, de forma livre e amorosa. Esta busca está bem presente entre nós, ainda que por invocar como salvação. E se este desejo existe é porque não experimentamos o mundo na sua melhor versão, é porque o mundo precisa de intervenção.

O desejo de salvação, de liberdade, de acolhimento e promoção do outro pede disponibilidade. Pede uma oblação de vida ao que é bom e justo, de forma livre e amorosa. Pede um oferecimento de vida que torna obsoletos os nossos interesses e comodidades, isto é, uma disposição sacrificial, um «fazer sagrado».

Tendemos a crer que sacrifício é sinónimo de exigências espúrias e descabidas de divindades imaginárias, um resquício indesejado e desnecessário de mentalidades primitivas dependentes do mito, ou, no seu sentido secular, um sinónimo do que é difícil, do que é árduo, do que é perda. Mas no seu esplendor dador de sentido, o sacrifício aponta a realidade indesmentível e necessária de oblação total e completa pelo bem do outro, sem negociação, por desejo do bom, do verdadeiro, do belo.

À partida isto pode parecer-nos contraintuitivo, mas todas estão unidas pelo desejo de salvação, salvação que se faz possível através da disponibilidade para o sacrifício, para uma oblação.

Esta intuição, por muito que a queiramos matizar e aguar, persiste irreprimivelmente em nós. E por isso vem à tona. O sentido profundo que «salvação» e «sacrifício» apontam abunda em narrativas contemporâneas de grande sucesso, seja em séries como Squid Game ou Lost in Space, ou em blockbusters como Harry Potter e os Talismãs da Morte ou Avengers: Endgame.

À partida isto pode parecer-nos contraintuitivo, mas todas estão unidas pelo desejo de salvação, salvação que se faz possível através da disponibilidade para o sacrifício, para uma oblação. A imaginação continua a ser espicaçada pelo mistério inscrito nas palavras «salvação» e «sacrifício», e isto é um bom sinal.

As quatro narrativas mencionadas confrontam-nos com situações desesperançadas, em que a conformação com o status quo ou com as regras do jogo, ou a resignação diante da desproporcionada força do mal aparentam ser as únicas alternativas. Mas os protagonistas, mesmo quando hesitantes e duvidosos, determinam-se a persistir no caminho do bem, não deixando apagar em si o desejo do que é bom e justo. Eles arriscam perder as suas próprias vidas para alcançar um bem aparentemente inatingível. São histórias de esperança contra toda a esperança (Rm 4, 18), enraizadas num possuir agora o que ainda se espera, num apontar a um horizonte que ainda não se vê (Hb 11, 1). Há um plano superior, uma realidade que excede as expectativas lógicas, que os convoca.

Quando olhamos o mundo de Harry Potter, seja nos livros seja nos filmes, encontramo-nos com o malo malissimum Voldemort, um personagem que pretende derrotar a morte e assim viver para sempre, disposto a sacrificar todos no seu caminho, mas incapaz de compreender o sacrifício próprio. Harry Potter, para o derrotar, segue o trilho inaugurado pela sua mãe quando este era ainda bebé: o sacrifício por amor. A oblação gratuita e amorosa da sua mãe protegeu-o – salvou-o – da maldição, e este, ao oferecer a própria vida para derrotar o mal, alcança a «salvação» de todos.

De modo similar, ainda que simbolicamente mais pobre, o arco narrativo que dominou a passada década do Universo Cinemático Marvel está também marcado pelo desejo de salvação. Esta saga culmina nos dois últimos filmes de Avengers (Vingadores), a famosa coligação de super-heróis que finalmente defronta o seu arqui-inimigo Thanos. Este, angustiado pela sobrepopulação e exaustão de recursos que levaram à destruição do seu planeta, é movido pelo desejo de sustentabilidade do universo. Para Thanos, só através da extinção de metade dos habitantes do universo é possível alcançar um futuro harmonioso. Para ele, a salvação reside neste benevolente e justo – porque cego e indiscriminado – holocausto.

Resgatemos as palavras «salvação» e «sacrifício» do pó insuflando-lhes espírito. Desempoeiremos estas «palavras noz», rompamos as suas cascas e comamos o fruto que se nos oferece no seu interior.

Thanos é tão imparcial como o nome grego que leva: morte. Ele representa a engenharia social movida por uma justiça cega. Ele é um ícone da boa vontade centralizada do Estado quando este idolatra a imparcialidade e ignora a misericórdia. Esta cegueira da justiça à bondade, ao valor e dignidade de cada uma das vidas que habitam o universo permite um universo sustentável, mas traumatizado. É um universo ferido. Os Avengers mobilizam-se então na defesa de uma realidade imperfeita, mas preservada dos horrores do genocídio.

Este enredo tem uma visão de salvação secular. É uma soteriologia sem grande transcendente. Mas, mais uma vez, para que o mal seja derrotado, regressa o leitmotiv do sacrifício. Um dos protagonistas, alguém que no início do arco narrativo é um egocêntrico e arrivista empresário, após um processo de lenta e gradual conversão, faz-se disponível para assumir o custo do gesto que permite restaurar a vida a todos: oferecer a sua própria vida. Sacrifica-se.

Em nenhum dos casos que avanço o sacrifício era exigido por uma força externa. Não estamos dentro do campo mitológico de divindades cruéis que demandam sacrifícios para que a sua ira seja apaziguada. Aquilo a que assistimos é ao vingar de uma consciência sempre presente, ainda que silenciada, e que nos acompanha desde a nossa gestação no útero, e que experimentamos ao longo da nossa vida: dar vida a outro exige que se ofereça a própria vida. Dar vida é dar «a» vida, é oferecer-se. Não como negócio numa balança invisível do destino, num deve e haver, mas numa oblação gratuita: fazer o bem implica assumir o custo desse bem. Falar de amor sem falar de sacrifício é mentir.

Nenhuma destas narrativas tem a riqueza da visão cristã da salvação. Mas Cristo e a sua salvação ecoam no seu interior, como ondas irreprimíveis de graça. Porque resistimos a introduzir os nossos irmãos nesta riqueza, perene e sempre atual, de palavras que apontam o mistério da nossa fé? Resgatemos as palavras «salvação» e «sacrifício» do pó insuflando-lhes espírito. Desempoeiremos estas «palavras noz», rompamos as suas cascas e comamos o fruto que se nos oferece no seu interior. E que esse fruto, ao cair em nós, seja semente que encontre terra boa, que cresça, que faça de cada um de nós uma árvore. E que, como árvores, tenhamos, como Daniel Faria nos insta, «a incomparável paciência de buscar o alto | a verde bondade de permanecer | e orientar os pássaros».

 

Artigo originalmente publicado na edição de abril da revista «Mensageiro» – órgão oficial da Rede Mundial de Oração do Papa – Portugal

Fotografia de Aditya Vyas – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.