Degradações

Tornou-se velha e enfadonha a prédica segundo a qual "os partidos têm de se abrir à sociedade civil". Se quisessem por em prática o que pregam, então o caminho talvez passasse por convencer a "elite" a ingressar na vida pública.

A velhice não é para gente nova. Os velhos, pelo simples facto de o serem, têm alguns direitos que os demais só ganharão se tiverem futuro. Felizmente, há esperança: a juventude passa com a idade. O ancião tem o direito de trocar o nome às pessoas com quem conversa; de perder cinco ou dez minutos a tentar rememorar um pormenor perfeitamente dispensável na estória que conta, perante o desespero do ouvinte; e, como mais ninguém, de usar com propriedade a expressão: “no meu tempo é que era” – seguida de um suspiro melancólico.

Na maior parte das vezes, a afirmação deve mais à fantasia do que à verdade. E em boa parte à tendência de olhar para o (nosso) passado como um tempo melhor do que o presente ou do que será o futuro. E assim, aquele tempo “não era” ou pelo menos não era como quem o diz quer fazer crer. Mas como sempre há exceções: pessoas, coisas e circunstâncias presentes que são manifestamente piores do que foram, dando assim razão às jeremiadas do velho. E entre estas contam-se, entre nós, os deputados à Assembleia da República e os membros do Governo.

Vale muito a pena conhecer os nomes dos deputados eleitos para a Assembleia Constituinte em 1975. E após a aprovação da Constituição de 1976 e a dissolução da Constituinte, repetir a tarefa e atentar nos parlamentares eleitos nesse mesmo ano, bem como nos membros do 1.º Governo Constitucional. Da esquerda à direita (?), encontramos pessoas de enorme qualidade pessoal e profissional. Intelectuais brilhantes e empresários; advogados e académicos reputados; e pessoas que dedicaram toda a sua vida, na clandestinidade, a lutar pela Democracia e pela Liberdade. Alguns de uma coragem notável, que arriscaram o cárcere, sujeitaram-se a sevícias, foram presos ou conheceram o exílio. Em ambos os casos, as instituições do país – e este por óbvia decorrência – beneficiaram de terem a exercer funções em dois dos órgãos de soberania aquilo que melhor havia: a elite de Portugal.

São pessoas de um outro tempo, que hoje nos parece tão distante. Gente que vivera até então sob uma ditadura e que, na sua maioria, a combatera ativamente, procurando implantar um regime democrático em Portugal. Formavam uma elite que tinha em comum o comprometimento incondicional com a causa da Democracia e da Liberdade. Lutavam por algo que sabiam ser superior e mais importante do que cada um deles. E ainda que não o expressassem por palavras, o certo é que as suas ações revelam com frequência o cumprimento de um dever moral: o de colocar as suas competências e qualidades ao serviço do país, sendo que antes de mais, esse país precisava de se libertar das amarras da opressão e da ditadura. E fosse através de meios apodados pela Estado Novo de “subversivos”; ou mediante a tentativa de reformar e liberalizar o regime já com Marcello Caetano no poder, todos eles buscavam na essência um mesmo propósito. Liberdade. Democracia.

Não espanta pois que em face desde cenário pouco edificante, pessoas de grande mérito, capacidade profissional e intelectual, dotadas de um pensamento próprio, de liberdade de espírito e independentes, não se mostrem interessadas em participar na política.

Há palavras que parecem causar um certo engulho. Uma delas é a palavra elite, quando utilizada no contexto político. Há demasiados equívocos a rodeá-la, questões históricas que se prendem com o facto de nunca ter existido uma verdadeira elite em Portugal. Ou simplesmente que tal noção tem mais que ver com as condições económicas e sociais do que com a competência e os méritos. Uma espécie de palavra amaldiçoada que contraria princípios tão caros à Constituição como o da igualdade. Não se trata de filosofia política, de luta de classes ou de quaisquer outras conotações, mas antes de pragmatismo. Falar de elite deveria ser uma outra forma de dizer os melhores, aqueles que em cada momento histórico são mais capazes, mais qualificados, mais bem preparados e, simultaneamente, mais comprometidos com a ideia de servir o país e não se servir dele.

É uma ideia que releva essencialmente do senso comum. Cada um na sua via pessoal, em maior ou menor medida, acaba por aceitar esta ideia simples e de a pôr em prática. Se está doente, procura o melhor estabelecimento de saúde para se tratar ou o melhor clínico que o assista. Os pais que estão à procura de uma escola para os filhos informam-se sobre qual a melhor que estes podem frequentar; e se tiverem possibilidades, inscrevem-nos num colégio não estatal convencidos que ali o ensino e os profissionais serão melhores. Quem recorre a um advogado, tenta colher informação sobre se o causídico é o melhor que o seu dinheiro pode pagar para lhe prestar os serviços pretendidos.

Ora, se assim é por que razão não deveriam as pessoas querer que os deputados que legislam e os ministros e secretários de estado que governam fossem igualmente os melhores? É demasiado óbvio que, em última instância, são estes que determinam os impostos que pagamos, que asseguram a existências de cuidados de saúde, que garantem a educação, que contribuem para a manutenção da segurança, entre tantos outros aspectos que definem a maior ou menor qualidade de vida dos cidadãos. Mas mais importante: que asseguram a continuidade da Democracia e da Liberdade.

De certa forma os partidos capturaram o regime. Um grupo muito reduzido de pessoas, o presidente e a sua entourage, decidem quem é eleito e não os cidadãos.

Mas após as primeiras legislaturas, começou a tornar-se evidente o decréscimo da qualidade e do mérito dos deputados e governantes. As listas de deputados apresentadas às eleições legislativas tornaram-se róis de mediocridades, escolhidas pela sua fidelidade ao chefe do partido. Mediocridades que bastas vezes principiaram a sua vida política nas famigeradas “jotas” e que através da dedicação ao “capo” – que poderia mudar consoante o vento soprasse – foram subindo degraus até serem premiadas com um lugar elegível ou uma assessoria. E quem sabe, no futuro, um lugar no executivo. Nos piores casos estamos perante videirinhos que falam uma “língua de pau” audível nas televisões e rádios e que se limitam a replicar a voz do dono.

De certa forma os partidos capturaram o regime. Um grupo muito reduzido de pessoas, o presidente e a sua entourage, decidem quem é eleito e não os cidadãos. Isto porque o jogo está viciado à partida: quem elege é o povo, mas as opções – leia-se: os deputados – são definidas pelos partidos em função de critérios espúrios ao interesse do país e da boa governação. Não espanta pois que em face desde cenário pouco edificante, pessoas de grande mérito, capacidade profissional e intelectual, dotadas de um pensamento próprio, de liberdade de espírito e independentes, não se mostrem interessadas em participar na política.

Tornou-se velha e enfadonha a prédica segundo a qual “os partidos têm de se abrir à sociedade civil”. Se quisessem por em prática o que pregam, então o caminho talvez passasse por convencer a elite da academia, da ciência, do comércio, da tecnologia, da gestão, de todas as áreas relevantes e com interesse para a sociedade, a ingressar na vida pública. Mas é preciso dar-lhes liberdade para poderem marcar a diferença e fazer melhor do que aqueles que lá estão. Caso contrário, os partidos estão a despir essa elite daquilo que as torna precisamente… uma elite. E no final não passarão de mais um nome na lista a repetir um discurso oco e a cuidar da sua vidinha.

Olhando para a actual composição da Assembleia da República, da esquerda à direita, nos novos e nos velhos partidos, assusta ver a quantidade de desconhecidos, de pessoas sem particular mérito ou qualificação e incapazes de produzir um pensamento próprio. Ou ainda de reconhecer nos eleitos uma especial marca de dedicação ao país ou de serviço público. E no momento em que dois partidos com responsabilidades governativas desde o 25 de Abril se preparam para eleger os respectivos líderes, apetece perguntar se não havia pessoas melhores. Se havia, então o regime está mais podre do que parece; se aquela gente é a elite, e não há melhor, então estamos desgraçados. Quem vier atrás que apague a luz.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.