Junho é sempre um mês de balanços. Termina o ano letivo, damo-nos conta de que já passou metade do ano e talvez seja tempo de revisitar as nossas resoluções de Ano Novo. O ritmo abranda com os feriados e permitimo-nos interromper a rotina já cansada que anseia pela entrada na época estival.
No meio dos nossos dias, com as slots todas ocupadas (que passam e se sucedem quase sem darmos por isso), somos desafiados a parar, olhar para a nossa realidade e avaliar.
O que valorizamos? A que temos dado prioridade? Quanto tempo dedicamos ao trabalho e quanto tempo dedicamos ao cuidado?
Seguramente sabemos dar resposta à pergunta: “o que fazes?”, mas será que sabemos responder à pergunta: “do que/de quem cuidas?”.
Foi neste ambiente de autoavaliação que me voltei a debruçar sobre o Part-Time for All: A Care Manifesto de Jennifer Nedelsky e Tom Malleson. Um livro com uma abordagem inovadora e muito interessante, com o qual já me tinha cruzado, mas no qual ainda não tinha mergulhado.
Partindo da premissa de que estamos sempre a tempo de alterar, repensar, reestruturar a forma como nos organizamos em sociedade, propõe-nos, em concreto, repensar a forma como nos relacionamos com o trabalho e com o cuidado (como tantas vezes acontece em cada mudança de época), e demonstra-nos que, na verdade, trabalho e cuidado podem ser duas faces da mesma moeda.
Para facilitar a leitura do texto, “trabalho” deve entender-se como o trabalho remunerado e “cuidado” como todas as atividades associadas às tarefas domésticas/familiares, ao cuidado das crianças, dos idosos, dos doentes, dos deficientes, em sentido lato. Sendo esta distinção utilizada apenas para efeitos de identificação do problema e proposta de soluções (é claro que o “bom” cuidado exige trabalho, e que o “bom” trabalho tem sempre o cuidado integrado na sua estrutura).
Atualmente, o ritmo de trabalho e o número de horas trabalhadas gera tensões e disfuncionalidades que se materializam em famílias stressadas, uma crónica escassez de tempo, desigualdades entre quem presta e quem recebe o cuidado, e ainda uma disparidade de backgrounds entre quem define e executa as políticas públicas e quem presta cuidado, seja esse o cuidado das crianças, dos idosos ou dos doentes/deficientes.
E, embora este diagnóstico seja relativamente consensual, e seja reconhecido globalmente que a forma como o trabalho está organizado nas sociedades ocidentais carece de reforma, as respostas que temos encontrado e oferecido para a compensação do número excessivo de horas trabalhadas têm sido redutoras ou, pelo menos, incompletas.
Não se trata apenas de flexibilizar as horas e o local de trabalho, não se trata apenas de uma melhor divisão de tarefas domésticas entre homem e mulher, para citar algumas das medidas mais populares, ou de remunerar/compensar quem presta o trabalho doméstico (ainda maioritariamente mulheres). Isto porque, embora importantes para aumentar a sensação de bem-estar dos trabalhadores/famílias a curto prazo não invertem o ciclo de desvalorização do cuidado.
Se é verdade que o trabalho depende do cuidado e o cuidado depende do trabalho, também é verdade que a organização do trabalho tem impedido e contribuído para a degradação do cuidado na medida em que o mercado do trabalho pago implica sempre que outros (normalmente imigrantes a receberem salários muito baixos) assegurem o cuidado que os trabalhadores não conseguem assegurar.
Se é verdade que o trabalho depende do cuidado e o cuidado depende do trabalho, também é verdade que a organização do trabalho tem impedido e contribuído para a degradação do cuidado na medida em que o mercado do trabalho pago implica sempre que outros (normalmente imigrantes a receberem salários muito baixos) assegurem o cuidado que os trabalhadores não conseguem assegurar.
Enquanto o “trabalhador modelo” tiver como característica primordial a disponibilidade e a prioritização do trabalho, abdicando das restantes dimensões da sua vida, o fosso das desigualdades continuará a crescer.
A proposta de Jennifer Nedelsky e Tom Malleson neste manifesto prevê que todos os adultos capazes devem prestar semanalmente 30 horas de trabalho remunerado (regime de part-time) e 22 horas de trabalho não remunerado (prestação de cuidados). Tal pretende recuperar e enaltecer a importância que o cuidado tem na experiência humana e na prossecução de uma sociedade mais justa e igualitária.
Esta mudança na estrutura do trabalho permitiria assim renovar a forma como o cuidado é percebido e estruturado na sociedade. Isto porque, se entendermos o cuidado como um custo, que os mais sortudos e afortunados conseguem externalizar, associando a um sinal de liberdade não ter quaisquer obrigações de cuidado, seja doméstico, familiar ou comunitário, perdemos o coração dos nossos valores fundamentais.
A nossa alegria, dignidade e satisfação face à vida está sempre associada às relações que estabelecemos, seja com os outros ou com aquilo que nos rodeia, e todas essas relações requerem cuidado para serem duradouras. Uma sociedade mais igualitária requer uma organização de trabalho mais justa, e a justiça requer uma divisão mais igualitária do cuidado.
Também o nosso sistema democrático beneficiaria de uma maior paridade entre quem define e executa as políticas públicas e quem presta cuidado, na medida que, no sistema atual quem se dedica ao cuidado de forma primordial raramente chega a uma posição em que possa decidir sobre que políticas queremos para a sociedade que estamos a construir; e os decisores, tendo tido necessidade de investir o grande bolo do seu tempo no trabalho (muitas vezes mais de 60 a 70 horas semanais) não se dedicaram ao cuidado, muitas vezes perpetuando as estruturas já instaladas.
Acabar com o conflito endémico “work-life” acredito que terá seguramente um princípio de resposta na valorização do cuidado bem como no repensar das nossas estruturas de trabalho globais, e é responsabilidade de todos desenvolvermos esforços para pôr em marcha um plano de ação.
Se a resposta se conclui com o part-time for all, o assentar a tónica no “S” dos ESG (Environmental, Social and Governance), o rendimento básico universal, o reforço das políticas do Estado-social ou a flexibilização do mercado de trabalho, ainda estamos por descobrir, mas sabemos que se fizermos as perguntas certas e analisarmos de forma eficaz a nossa realidade já estamos a caminhar.
O verão que agora começou atrasa o ritmo dos relógios e dá-nos fôlego para a próxima estação. Que entre um mergulho no mar e o descanso merecido possamos avaliar que prioridades têm ocupado os nossos dias e de quem temos cuidado, mas sobretudo identificarmos de quê ou de quem precisamos de cuidar.
E claro, recomendo muito a leitura do livro que podem encontrar aqui.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.