De Gaulle no cinema

A beleza do filme reside na sua capacidade de nos mostrar um De Gaulle profundamente humano.

Normalmente, enquanto indivíduos somos levados pelo oceano da História. Mas neste caminho que a todos congrega, por vezes surgem homens cujas opções de vida definem o rumo das correntes que irão determinar o futuro do nosso destino comum. Um desses homens talvez tenha sido Charles de Gaulle (1890-1970). Prestes a chegar às salas de cinema do nosso país (estava prevista a estreia para o dia 5), o filme de Gabriel Le Bomin sobre o General francês tem o mérito de mostrar um De Gaulle decisivo na Guerra que ameaçou as democracias europeias, apesar de não fazer dele um herói sobre-humano.

A trama narrativa não faz propriamente uma homenagem ao General. É tudo muito intenso para se passar num tão curto espaço de tempo. No ápice de um breve conjunto de meses, tudo acontece. O enredo situa-nos naquele fatídico ano de 1940. Assistimos à invasão dos exércitos de Hitler que, a partir do mês de maio daquele ano, começam a ganhar terreno em pleno solo francês. O governo da nação invadida parece não ter outra alternativa senão assumir a derrota militar, exercendo uma diplomacia quiçá capaz de atenuar os efeitos da pesada subjugação nazi.

É nesse contexto que De Gaulle, recentemente elevado a general, se obstina contra a rendição. O contraste entre o pânico ‘racional’ de certos elementos do governo e a ‘desmesurada’ esperança de De Gaulle na vitória leva-nos a percecionar este personagem como se de um louco se tratasse. Muitos dos seus contemporâneos estagnaram nessa primeira perceção. Mas quando nos deixamos tocar pelo outro contraste que se estabelece entre os ideais democráticos defendidos pelo General e o que estava para vir com o nacional-socialismo, aí percebemos que estamos diante de um Homem com “H” grande. De facto, graças à sua obstinação em continuar a combater a Alemanha nazi, propósito que o General levará até ao fim da guerra, a França pôde, no final do conflito, sentar-se do lado dos vencedores. Pois, em 1940, aquele que oficialmente era o governo francês, em Vichy, acabou por aceitar a vitória dos nazis, tendo passado a colaborar a partir de então com os invasores alemães.

Mas quando nos deixamos tocar pelo outro contraste que se estabelece entre os ideais democráticos defendidos pelo General e o que estava para vir com o nacional-socialismo, aí percebemos que estamos diante de um Homem com “H” grande.

Quanto às opções políticas que conduziram ao governo de Vichy, o filme talvez apresente um Maréchal Pétain demasiado caricaturado. Mas é interessante ver altas figuras do Estado francês a expressar uma opinião, bastante em voga na altura, segunda a qual a Europa do futuro seria construída pelo nacional-socialismo, que à época tendia a ser encarado como uma ideologia progressista. Percorrer aquele ano de 1940, tentando perceber as posições dos seus protagonistas, deixa-nos um alerta para hoje: por vezes, os desenvolvimentos da História são inesperados, imprevisíveis, pelo que é difícil prever o futuro e os valores que o irão definir. Convém desconfiar das modas do tempo, procurando antes ancorar-se nos valores mais profundos que da humanidade possam vir.

A beleza do filme reside na sua capacidade de nos mostrar um De Gaulle profundamente humano: humano no sentido de ser frágil, de ter emoções, de não ser um super-homem e no sentido de defender os valores de uma civilização que preserva a inviolável dignidade da pessoa humana.

A coragem não é tudo na pessoa que ele foi. As dúvidas, os medos, misturados com o enorme desejo de fidelidade e centrados nas relações com os seus familiares mais próximos… tudo isso define aquela pessoa que também era general. E, a esse propósito, um dos aspetos mais belos do filme diz respeito à relação com a sua mulher, Yvonne, e com os seus filhos, especialmente a petite Anne, a filha mais nova com a síndrome de Down. É por ela que De Gaulle manifesta especial ternura e amor. Em vez de a terem deixado num centro especializado para as pessoas com trissomia 21, tal como era habitual à época, o casal De Gaulle deixou a petite Anne crescer em casa com a família. O enredo de 1940 é por vezes interrompido com breves flashbacks que nos revelam uma ligação profunda desta filha com o seu pai. E, assim, acabamos por compreender o que De Gaulle diz, a dado momento, à sua mulher: “é a nossa filha que me dá força para continuar”. Nas relações que De Gaulle estabelece com a filha e com a mulher vislumbramos ternura e força. E é por isso que este Homem, com “H” grande, não deixa de ser um verdadeiro homem de carne e osso.

O enredo move-se entre a política e a esfera pessoal, entre a preocupação em vencer a Guerra e o cuidado pela sua família que acaba por conseguir juntar-se ao seu Charles em Londres até que o conflito termine.

É nesse âmbito mais pessoal que nos apercebemos da fé católica, não sem fervor, professada por Charles de Gaulle (e este respeito, vale a pena ver o documentário La foi du Général transmitido por KTO). Por um lado, a fé ajuda-o a ter a coragem e a esperança necessárias para que ele se mantenha fiel aos valores mais altos pelos quais vale a pena dar a vida. Por outro, a defesa dos valores do regime francês, permite-lhe aprofundar enquanto cristão a reconciliação entre o catolicismo francês e a República que define aquela Nação desde o século XVIII.

Por outro, a defesa dos valores do regime francês, permite-lhe aprofundar enquanto cristão a reconciliação entre o catolicismo francês e a República que define aquela Nação desde o século XVIII.

A relação com Churchill é outro dos aspetos interessantes do filme. Como cada um de nós, De Gaulle não é uma ilha isolada. A coragem não lhe chega para atingir os seus objetivos. Depois de ter perdido a nacionalidade francesa e de ter sido condenado à morte pelo governo do seu próprio país, é através das relações com os outros e das suas decisões que De Gaulle poderá tornar-se no General que hoje conhecemos.

Cinquenta anos depois de ter deixado este mundo, podemos voltar a escutar o breve discurso que De Gaulle proferiu para todo o mundo, pronunciado, graças à autorização de Churchill, a 18 de junho de 1940: um discurso cheio de esperança num mundo de democracia e liberdade. Hoje, num mundo polarizado por posições extremas e fundamentalismos capazes dos atos mais bárbaros, este discurso pode continuar a ressoar nos nossos corações para lhes dar a vida que o nosso futuro comum precisa.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.