Crises europeias e poder europeu

História recente da conquista de poder pela União Europeia, em geral, e pela Comissão em particular. E como é melhor aprendermos a lidar com isso.

O poder das Instituições pode vir de três lugares: das Leis, da força ou das circunstâncias e do uso que se faz delas. Nos últimos anos, em particular na última década, a União Europeia (UE), em geral, e a Comissão Europeia em particular, têm assumido poder porque as Leis deixam, a sua força financeira permite-lhe e as lideranças têm sabido aproveitar as circunstâncias. Se isto é bom ou mau, depende do que venha a seguir. Mais importante, em todo o caso, é saber lidar com a realidade.

O caminho da conquista de poder europeu vem de longe. Vem da reforma dos Tratados, uns atrás dos outros, dos alargamentos, da criação do mercado interno, da moeda única, da política comercial e sobretudo, durante muito tempo, de uma estratégia de regulação detalhada para construir uma Europa harmonizada de cima para baixo. Por mais que os eurocépticos ou anti-federalistas se queixassem, a criação de um mercado interno implicou a existência de regras idênticas pela Europa fora. Em muitas matérias podia-se ter ido pelo reconhecimento das regras de uns como válidas nos países dos outros, mas isso não teria empurrado a Europa para uma União Europeia. Que era o que se queria.

O maior salto em frente, porém, deu-se por volta de 2011, com a crise das dívidas soberanas. Apesar do resgate de Irlanda, Grécia e Portugal ter sido feito pelas Troikas compostas pelo Fundo Monetário Internacional, o Banco Central Europeu e a Comissão Europeia, o legado desses tempos foi o reforço da União Europeia. Sobretudo da Comissão Europeia.

Além de terem sido as políticas da UE a serem o farol da maioria das regras impostas aos governos excessivamente endividados, também foi a União Europeia que ficou a vigiar estes países quando a Troika se foi embora.

Além de terem sido as políticas da UE a serem o farol da maioria das regras impostas aos governos excessivamente endividados, também foi a União Europeia que ficou a vigiar estes países quando a Troika se foi embora. Sobretudo porque era o Euro que estava em causa, dir-se-á. Certo. Mas isso não desmente o argumento. Pelo contrário.

As crises pós 2008, explicadas, entre outras causas, pelas assimetrias económicas e pela diferente governação e trajectória económica de cada país, implicaram um reforço do poder da União Europeia, e dos pares dos países endividados, na sua supervisão. O Semestre Europeu foi uma forma de os restantes Estados membros, e em especial a Comissão Europeia, passarem a ter uma palavra a dizer na gestão orçamental de cada país da zona Euro. Apesar de lhe ter faltado, até agora, capacidade para se impor decisivamente, esta alteração transformou o equilíbrio de poder europeu. Ficaram todos, mas especialmente os mais necessitados, mais dependentes dos restantes países e da Comissão Europeia na definição das suas políticas. Já não são os fundos e as regras, através das Directivas e Regulamentos, já é também o detalhe das escolhas políticas nacionais, que é o que um Orçamento de Estado é.

O reforço da Europa e, em especial, da Europa continental foi também alimentado pela política externa desastrosa de Donald Trump e reforçado pelo Brexit. Ao insultar e alienar os aliados europeus e perturbar a sua política interna, Trump tornou a UE mais centro-europeia. Menos atlântica. O Brexit empurrou-a no mesmo sentido.

O reforço da Europa e, em especial, da Europa continental foi também alimentado pela política externa desastrosa de Donald Trump e reforçado pelo Brexit.

Em 2020 e depois, a pandemia e a resposta que lhe foi dada contribuiu, de novo, para termos mais Europa. Por necessidade e oportunidade.

Depois de um começo desastroso, onde parecia que corríamos o risco de regressar a uma espécie de Estado Natureza, com cada um a salvar-se como pudesse, a Alemanha ficando com máscaras, a Áustria fechando-se da Itália, e por aí fora, a intervenção da Comissão Europeia, e a prestação da sua presidente, Úrsula von der Leyen, deu a sensação de que havia quem soubesse o que devia ser feito e estava a fazê-lo. A compra das vacinas não foi ideal, mas foi manifestamente melhor do que se tivessem ido os 27 às compras isoladamente.

Ao mesmo tempo, a crise económica subsequente mostrou que o impacto da pandemia não era simétrico. Não só causava mais estragos nas economias que mais precisavam de gente a mexer-se – como são as que dependem do turismo – como exibiu a diferença de bolsos assim que a Comissão Europeia suspendeu as regras da concorrência e, resumidamente, deixou cada país gastar o que pudesse, ficando evidente o óbvio: uns podiam mais que outros. Daí à aceitação de dívida comum para apoiar os mais precisados – de novo mais ou menos os mesmos – foi um passo. Que, de novo, reforçou a Comissão Europeia e, portanto, a UE.

O ano de 2022 leva-nos por idêntico caminho. Perante o vazio alemão, com a saída de Merkel e a ainda recém-chegada de Scholz, a responsabilização da Alemanha pela dependência europeia da Rússia, uma França ocupada consigo mesma e preocupada com o seu papel depois da guerra, foi de novo a União Europeia e Úrsula von der Leyen que se destacaram. Se o Reino Unido ainda fizesse parte, Boris Johnson teria sido o primeiro Primeiro-Ministro, o primeiro líder da UE, a ir à Ucrânia. Assim, foi Von der Leyen. E, além disso, em vez de uma liderança franco-alemã, como noutras circunstâncias, houve um pelotão com os países escandinavos, bálticos e a Polónia a puxar pela posição europeia. E foi evidente a necessidade da NATO e do empenho americano para assegurar a defesa da Ucrânia e a segurança Europeia.

Perante o vazio alemão, com a saída de Merkel e a ainda recém-chegada de Scholz, a responsabilização da Alemanha pela dependência europeia da Rússia, uma França ocupada consigo mesma e preocupada com o seu papel depois da guerra, foi de novo a União Europeia e Úrsula von der Leyen que se destacaram.

O ano ainda não acabou e já se configura mais um factor de reforço do papel da União Europeia. E de desfasamento entre os Estados membros.

Apesar das decisões externas terem sido tomadas por todos, uma grande parte da resposta à crise energética foi feita pelos Estados. Cada um entregando às suas empresas e famílias o dinheiro que queria e podia para as poupar ao aumento do preço da energia. E, obviamente, cada um pode coisas muito diferentes. E nenhum pode tanto quanto a Alemanha, que além do mais teme um desastre industrial irrecuperável que não está disposta a deixar acontecer.

Uma vez mais, a suspensão das regras da concorrência e a autorização para cada governo gastar o que quer e, sobretudo, o que pode, agrava as diferenças entre uns Estados e os outros. Assim como fará qualquer medida proteccionista da indústria europeia para responder ao novo proteccionismo americano que dependa dos dinheiros que cada país tenha no cofre. Como é evidente, não temos todos o mesmo.

A escala dos problemas das últimas décadas tem imposto respostas europeias. E, na maior parte dos casos, ainda bem que têm existido. Mas a assimetria económica, o reforço do poder do centro da Europa, umas vezes de Bruxelas outras de Paris ou de Berlim, torna a Europa da União Europeia mais centralizada. Mais decidida em Bruxelas do que em cada uma das 27 capitais. Isso não é irremediavelmente mau. Ou, no mínimo, não implica o desaparecimento do interesse nacional e da sua defesa e representação. Pelo contrário. Mais que nunca, é preciso perceber que numa Europa reforçada temos de nos interessar por muito mais do que apenas pelo dinheiro europeu.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.