Coração partido: o regresso de Nick Cave

O coração partido revela-se de muitos modos. E neste caso salva — como a música, já se sabe.

Nick Cave está de regresso à gravação de um álbum com os seus Bad Seeds, depois de Ghosteen (2019). A notícia foi dada pelo próprio, em The Red Hand Files, o site que alimenta com respostas à correspondência dos seus fãs. Numa carta publicada a 15 de maio, Nick Cave anuncia “algumas semanas de folga” do site por, a partir desse dia, entrar em estúdio e trabalhar “nas músicas do novo disco do Bad Seeds”.

Antecipando que “as músicas estão a soar ótimas”, o compositor, cantor e músico australiano, há muito radicado na Grã-Bretanha, não desvela muito mais sobre como vai ser esse disco. Neste intervalo, Nick não tem estado parado: gravou sozinho, numa emissão ao vivo por streaming, o disco Idiot Prayer (Nick Cave Alone at Alexandra Palace), em plena pandemia (2020), escreveu o libreto para uma ópera de câmara do belga Nicholas Lens, L.I.T.A.N.I.E.S (2020), juntou-se a Warren Ellis, seu companheiro nos Bad Seeds, para gravar um dos grandes álbuns do ano de 2021, Carnage, e acompanhou o mesmo Ellis em três bandas sonoras: La Panthère des neiges (2021), Dahmer — Monster: The Jeffrey Dahmer Story e Blonde (ambas em 2022); reuniu os seus B-Sides & Rarities Part II (2021), com os Bad Seeds; por fim, escreveu e leu Seven Psalms (2022) num disco tão breve quanto intenso. E ainda teve tempo para uma longa conversa em livro, com o jornalista Seán O’Hagan, cujo título é uma perfeita síntese da vida, obra e música de Nick Cave: Fé, Esperança e Carnificina (ed. Relógio d’Água, 2022).  No meio disto tudo, passou por duas vezes no verão do ano passado pelos palcos do Porto e de Lisboa.

Respiremos: este enunciado burocrático quase esconde o caminho que Cave tem feito, nestes anos mais recentes, no qual parece ter pressa em dialogar com Deus. O músico perdeu dois filhos nos últimos anos, e — a partir da morte de Arthur, em 2015, aos 15 anos — a sua criação artística assemelhou-se a uma erupção violenta em que assomam o amor, a dor, a morte e Deus. Se estes eram temas já recorrentes na sua obra, agora Nick Cave sintetiza o que o guia: “Assumi, por razões de sobrevivência, um compromisso com a natureza incerta do mundo. É aqui que o meu coração está.”

Respiremos: este enunciado burocrático quase esconde o caminho que Cave tem feito, nestes anos mais recentes, no qual parece ter pressa em dialogar com Deus.

No livro Fé, Esperança e Carnificina, o australiano reconhece: “As canções que escrevo hoje em dia tendem a ser canções religiosas no sentido mais lato do termo. Essas canções comportam-se como se Deus existisse. Essencialmente, argumentam a favor da própria crença, pese embora sejam às vezes ambivalentes ou inconsistentes quanto à existência de Deus.”

E que Deus é este, então? Há tempos, na troca de correspondência com os fãs, à pergunta “o que é Deus?”, a resposta foi assertiva: “Deus é amor”, adiantando que é por isso que sente “dificuldade” em relacionar-se “com a posição ateísta”. E demora-se a explicar: “Cada um de nós, mesmo os mais resistentes espiritualmente, anseia por amor, quer percebamos ou não. E esse anseio chama-nos para sempre em direção ao seu objetivo — que devemos amarmo-nos uns aos outros. Devemos amarmo-nos uns aos outros. E principalmente acho que o fazemos — ou vivemos muito próximos dessa ideia, porque quase não há distância entre um sentimento de neutralidade em relação ao mundo e um amor crucial por ele, quase nenhuma distância de todo. Tudo o que é necessário para passar da indiferença ao amor é ter os nossos corações partidos. O coração parte-se e o mundo explode diante de nós como uma revelação.”

O coração partido revela-se de muitos modos. E neste caso salva — como a música, já se sabe. “Para mim, a canção de amor existe, em última análise, para preencher o silêncio entre nós e Deus, para diminuir a distância entre o temporal e o divino.”

Fotografia:
Autor – Raph_PH
NickCaveCroydon040921 (4 of 41) | Raph_PH | Flickr

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.