Hoje é sexta-feira santa, e eu quase cedia à tentação de escrever sobre algum tema leve, inócuo, que contornasse o drama da paixão de Cristo. A leveza, a informalidade e a descontracção estão na moda, e não há nenhum mal nisso, mas é preciso ser-se muito ingénuo para não perceber as muitas histórias de injustiça, de sofrimento e de fragilidade que se escondem por detrás dos mundos de fantasia que vamos construindo. Hoje é sexta-feira santa, e talvez nos fizesse bem pousar o nosso olhar sobre alguma das muitas cruzes que (ainda) povoam os espaços que habitamos. Nem que mais não seja, para alcançarmos alguma lucidez sobre nós próprios e sobre o mundo que habitamos e sobre a vida que nos é dado viver. Ao leitor que aceitar o convite a um gesto excêntrico, porventura de timbre medieval, a contemplar, ainda que por alguns instantes, o símbolo sempre inquietante dos cristãos, deixo três breves apontamentos.
Primeiro. A cruz do Nazareno permanece como um memorial à multidão de vítimas, tantas delas anónimas, que a nossa história vai tentando esquecer. Jesus morreu vítima da injustiça, da negligência e da cobardia. Não foi o único. Não foi apenas uma infeliz exceção. A história, também a nossa história recente, está manchada pelo sangue de inúmeras vítimas. A cruz de Jesus convida-nos a prestar-lhes, ao menos, a homenagem da memória. Já nos habituámos a escutar o Papa Francisco denunciar a cultura do descarte. Jesus foi um descartado que a história tentou engolir, como engoliu tantos outros. A cruz preserva intacta a sua memória e convoca-nos para prestarmos uma homenagem, simples como uma recordação, a todos os descartados da história.
Segundo. A cruz parece-se com um sinal mais. Um sinal mais que indica um estilo de vida marcado pela escolha da coerência, da verdade, da justiça e, sobretudo, do amor (outra palavra gasta e ainda assim insubstituível). Creio não exagerar se disser que estamos todos apreensivos com o momento histórico que vivemos. As promessas de que os problemas da humanidade estavam mesmo a terminar afinal não se concretizaram. Como sempre, no nosso mundo continua (quase) tudo por fazer. E a quem quiser fazer a diferença devemos dizer, para que não vá ao engano: aquele que se sentir chamado a viver como cordeiro no meio dos lobos precisa de estar preparado para dar a sua vida. E dar a vida tem pouco de romântico, afinal. Sobretudo, porque na maior parte das vezes não vai haver ninguém para bater palmas ou oferecer uma condecoração. Muitos de nós ainda não desistimos de sonhar com um mundo mais justo e mais solidário. Um mundo assim é, também, uma escolha. Uma escolha que se faz em cada momento da vida e nos lugares quotidianos. O sinal mais indica a escolha certa.
3. Quando Jesus quis falar da sua própria morte, usou a metáfora do grão de trigo: «se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer dá muito fruto» (Jo 12, 24). Habitualmente, nas sociedades contemporâneas, a nossa vida acontece longe da terra e dos seus ritmos. Não vemos o semeador lançar a semente à terra. Não sentimos o cheiro da terra fecundada pela chuva. Não sabemos aguardar com paciência a morte da semente, no seio da terra fértil. Não testemunhamos o desabrochar dos grãos de trigo, que rompem a terra suavemente. Não vemos a terra nua vestir-se da túnica de cor verde suave, anunciando a primavera… O ritmo profundo da vida, o mesmo que anima o grão de trigo lançado à terra, torna-se visível na entrega até à morte do crucificado e deixa-nos uma promessa: uma vida que sabe entregar-se à morte não deixará de ser fecunda.
Hoje é sexta-feira santa. Somos convidados a um gesto excêntrico: contemplar, na cruz, um condenado que morreu há quase dois mil anos e cuja memória o tempo não pôde apagar. Uma memória que presta homenagem às vítimas da história, uma memória que convida a abraçar um estilo de vida assinalado pelo sinal mais, uma memória que nos recorda o ritmo íntimo da vida. Àqueles a quem for dado olhar mais fundo, a cruz há de aparecer como o lugar improvável, onde Deus abraçou a humanidade e a acolheu na sua intimidade. E isso sim, é um gesto verdadeiramente excêntrico. E também desmesurado. Como só o amor pode ser. Uma Santa Páscoa!
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.