Muito se tem escrito nas últimas semanas sobre uma suposta teia de ligações familiares capaz de manipular o poder público em função dos seus próprios interesses. De facto, inúmeros são os episódios recentes que tal o indiciam. Apesar de não ser propriamente uma novidade no panorama da política nacional, temos assistido, nos últimos tempos, a uma sequência de episódios dignos de uma serie de feudalismo, ou não estaríamos nós numa república.
A este propósito, viemos a saber que o filho de um Secretário de Estado pôde fazer bons negócios com a Administração Pública enquanto o seu pai exercia um cargo político. E este, diga-se, foi apenas um dos múltiplos casos a palpitar os media nacionais e estrangeiros de familiares de governantes portugueses em estreitas relações contratuais com o Estado. Tudo isto muito embora a lei, supostamente em vigor, impedir que qualquer membro da família direta dos “titulares de cargos políticos e altos cargos públicos” forneça bens ou serviços ao Estado. Perante a clareza de tais palavras, há mesmo quem nos esclareça que a lei não é para ser lida literalmente. O que talvez se compreenda num país pequeno como o nosso.
Mas depois, com o tradicional calor do verão, vieram os incêndios. Além de tal episódio ser, infelizmente, uma tragédia cada vez mais habitual entre nós, desta vez, a novidade foi mesmo a das “golas”. Foram cerca de 125 mil euros que os contribuintes portugueses pagaram por um produto que, supostamente, os devia proteger dos incêndios, ou talvez apenas sensibilizar para o perigo do fogo. A trágico-comédia seguiu com a conversa em torno da qualidade, aparentemente discutível, de um produto cujo preço parecia se encontrar bem acima do de mercado. Contudo, o que mais chamou a atenção foi mesmo as ligações familiares dos fornecedores do produtor com certos governantes. Perante tal cenário, torna-se legítimo perguntar: “o que motivou a decisão de comprar estes kits anti-incêndios?”; “com que critério se escolheu a empresa Foxtrot?” Mesmo se não for corrupção, no estrito sentido do termo, parece-me ser inegável que uma cultura de amiguismo transparece em muitos destes casos.
Quem de nós nunca terá procurado, aceitado ou promovido relações através das quais o benefício obtido provém, não do mérito ou da justiça, mas sobretudo do “conhecimento”, da “amizade”?
Apesar do muito que se tem escrito e dito sobre o assunto, diante do favorecimento de amigos e familiares por parte de quem detém o poder de administrar a res pubblica, reina em geral um ambiente de pouca indignação entre nós. Porquê?
Creio, nesse sentido, que todos nós, cidadãos portugueses, devemos fazer um exame de consciência sobre a forma como esta cultura de amiguismo tende, ou não, a emprenhar-se no nosso modo de vida. Quem de nós nunca terá procurado, aceitado ou promovido relações através das quais o benefício obtido provém, não do mérito ou da justiça, mas sobretudo do “conhecimento”, da “amizade”? Engane-se quem pense que este é um problema de um único partido apenas, ou exclusivamente presente no mundo político. Da minha parte, julgo tratar-se de um problema, sobretudo, cultural. Pois o serviço aos amigos, ou amiguinhos, não se faz apenas através da manipulação do aparelho de Estado; em pequena ou em grande escala, o amiguismo existe nos mais diversos sectores da sociedade.
Nesse sentido, parece-me que a questão central não tem que ver com a possibilidade de entes familiares, ou “amigos próximos”, poderem estabelecer relações comerciais com as mais diversas entidades públicas: o problema é que sejam escolhidos em função desse laço; o problema é que tenham acesso privilegiado a informação; o problema é a ausência de critérios que primam pela eficiência e pela meritocracia. Sem uma maior transparência nos critérios que moldam as escolhas das nossas instituições, será impossível evitar as injustiças e o prejuízo que o amiguismo infringe na sociedade. O amiguismo, que é um abuso de poder, só se concretiza quando os critérios de quem decide não são conhecidos nem escrutinados na sua aplicação. É por isso que devemos falar deste problema, destas situações, denunciando-as. Mas a denúncia e a indignação só são credíveis se o nosso modo de decidir evitar favorecimentos ou exclusões indevidas que têm mais de feudalismo que de valores republicanos.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.