Conhecer e agir: a importância do tempo

A necessidade de conhecer as raízes do que existe e do que acontece é cada vez mais esquecida hoje, porque vivemos num tempo em que o passado parece não ter qualquer préstimo, só o presente conta.

Assistimos, e mesmo participamos, em grandes discussões que parecem não ter fim e, muitas vezes, não percebemos porque é que não somos capazes de encontrar uma saída para o problema. Em muitos casos, e passado algum tempo, acontece descobrirmos que a impossibilidade de encontrar solução se deveu ao facto de os protagonistas da discussão, inadvertidamente, terem usado o mesmo termo mas com significados diferentes ou até usarem a mesma palavra com a mente em conceitos diferentes. Bastaria que alguém tivesse chamado a atenção para o uso equívoco do termo para ultrapassar a dificuldade.

Este uso equívoco de termos é frequente em sociedades plurais como a nossa e, ainda muito mais acentuadamente, na sociedade europeia como um todo. Convivem no espaço público várias tradições culturais, como é próprio das sociedades pluralistas, e esse uso equívoco dos termos só pode ser ultrapassado se dermos atenção à história dessas culturas, como explicarei com um exemplo.

A equivocidade dos termos e a incompreensão do que acontece

O conceito de laicidade tem raízes cristãs e significa a existência da separação entre o sagrado e o profano, separação esta que o cristianismo é capaz de fazer porque a sua mensagem aponta para uma utopia que, em toda a perfeição, é irrealizável na história.[1] Esta distinção, nem sempre respeitada ao longo da história do cristianismo e cuja conquista não foi fácil é, desde há muito, reconhecida na cultura ocidental. Contudo, o entendimento do que seja a laicidade do espaço público e, concretamente, a laicidade do Estado, não é tão unânime quanto poderia parecer, como mostrou a polémica à volta do Preâmbulo do Tratado Constitucional Europeu.

Como conta Pierre De Charentenay em «La Charte européenne et la laïcité»,[2] a primeira versão do texto declarava «A União está fundada nos princípios indivisíveis e universais da dignidade da pessoa etc.». A formulação que mencionava «a herança cultural, humanista e religiosa» foi uma versão posterior que apareceu por diligência dos parlamentares alemãs do partido cristão democrata da Baviera (CSU) junto do Praesidium, uma vez que a sua Constituição faz referência a Deus. Depois da reunião do Praesidium de 11 e 12 de Setembro de 2000 surge a formulação: «Inspirando-se na sua herança cultural, humanista e religiosa, a União funda-se nos princípios indivisíveis e universais da dignidade da pessoa etc.» Foi então que o Primeiro Ministro francês interveio junto do presidente da Convenção para suprimir a referência à herança religiosa porque, «segundo ele, não respeitava o contexto de laicidade à francesa».[3] Como é evidente, pelo que se acaba de dizer, o conceito de laicidade dos deputados da CSU difere substancialmente da laicidade dos franceses. Enquanto que para uns a referência à tradição religiosa não é atentatória da laicidade, para a França uma tal referência num preâmbulo do Tratado Constitucional, segundo o seu Ministro dos Negócios, poria problemas «filosóficos, políticos e constitucionais».[4] Se há países cuja laicidade convive com referências à tradição religiosa e a Deus, para outros isso é inadmissível.

Enquanto que para uns a referência à tradição religiosa não é atentatória da laicidade, para a França uma tal referência num preâmbulo do Tratado Constitucional, segundo o seu Ministro dos Negócios, poria problemas «filosóficos, políticos e constitucionais»

É evidente que esta diferente sensibilidade perante a afirmação da laicidade se explica, em grande parte, pela história. Enquanto que nos países do Sul da Europa a laicidade foi estabelecida «sob a forma de uma imposição agressiva por parte de uma minoria ideológica sobre o todo da sociedade»,[5] imposição agressiva porque os seus mentores consideravam inaceitável, por exemplo, a influência da Igreja Católica no espaço público, para outros países a laicidade, que tinha sido uma necessidade exigida para a pacificação do espaço público, passou a ser vivida sem a carga ideológica que a tornou noutras partes agressiva. Um bom exemplo disso é o dos Estados Unidos da América do Norte. O país nasceu da procura de um espaço de liberdade que muitos procuravam para viver a sua fé sem constrangimentos, pelo que as manifestações públicas da fé não trazem, em regra, polémica.

Quem não conhecia o processo histórico que levou à laicidade não terá compreendido, com a profundidade necessária, a polémica que a redacção do Preâmbulo do Tratado Constitucional suscitou. As objecções francesas à redacção proposta só são compreensíveis conhecendo a história. Como é evidente, tal como aconteceu na referida polémica, se ficarmos pela espuma dos dias, pelo que acontece no presente, não compreendemos devidamente a realidade em toda a sua complexidade, porque nada surge a partir do nada nem sem razões. Tudo tem as suas raízes e para as descobrir é preciso ir à sua procurar, é preciso ir à história e descobrir nela o que levou ao estado actual.

“Quem não sabe donde vem, não sabe onde está e dificilmente saberá para onde vai”

A necessidade de conhecer as raízes do que existe e do que acontece é cada vez mais esquecida hoje, porque vivemos num tempo em que o passado parece não ter qualquer préstimo, só o presente conta. Vivemos num ambiente em que parece só existir o presente. Provavelmente um dos factores que contribui para este modo de pensar é o nosso hábito de termos a informação rapidamente, o que nos dá uma sensação de imediatez que leva ao esquecimento de que o presente vem sempre de um passado e é uma caminhada para o futuro. A consciência clara do que acabo de afirmar permite compreender que o presente só se compreende tendo em conta o passado e que o futuro se constrói tendo em conta o passado e o presente, o que vinca a justeza da seguinte afirmação: “quem não sabe donde vem, não sabe onde está e dificilmente saberá para onde vai”.

Esta noção clara de que tudo acontece no tempo, com passado, presente e futuro, é fundamental para se compreender o presente e construir o futuro; só podemos compreender o presente e imaginar o futuro conhecendo o passado.

Esta noção clara de que tudo acontece no tempo, com passado, presente e futuro, é fundamental para se compreender o presente e construir o futuro; só podemos compreender o presente e imaginar o futuro conhecendo o passado. Não que o futuro seja ou deva ser uma repetição do passado, o que, aliás, é impossível: o tempo avança, não se repete, a história é diacrónica. É por isso que há que distinguir entre tradição e tradicionalismo. O tradicionalista pretende o impossível: repetir o passado. Ora o tempo não pára, avança, e o tradicionalista, ao querer repetir o passado, esquece que o tempo é sempre outro, pelo que as circunstâncias são sempre diferentes. É por isso, por exemplo, que o método experimental, tal como é utilizado nas chamadas “ciências duras” não é aplicável sem mais em “ciências humanas”, porque o “objecto” destas ciências, o ser humano, é um ser essencialmente temporal, incompreensível, portanto, fora do tempo (o tempo é um existencial, disse Heidegger). Pelo contrário, aquele que conhece a tradição pretende construir um futuro partindo do que a tradição lhe legou. O conhecedor da tradição que não é tradicionalista sabe que para construir coisas novas tem de utilizar como matéria prima o que o passado lhe legou; isto é, sabe que para criar coisas novas tem de recorrer a coisas velhas que vai sintetizar de um modo novo.

O que fica dito é fundamental para compreender e participar no debate público, para, em suma, actuar. Com um exemplo. A discussão em Portugal sobre a educação faz uso de uma terminologia só compreensível se olharmos para a história do ensino formal no nosso país. Repare-se no seguinte: fala-se em “ensino público” e “ensino privado”; “ensino oficial” e “ensino particular”; afirma-se que o “ensino privado” tem, ou não tem, “paralelismo pedagógico”. Ora há uma distinção clara e que permitia imediatamente compreender o que as referidas distinções permitem camuflar: há “ensino estatal” e “ensino não estatal”.

Em síntese, sem uma consciência aguda da historicidade do ser humano e do seu agir, não é possível compreender em profundidade a sociedade nem, com alguma coerência, actuar eficazmente sobre ela.

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[1] Cf. Dom José  Policarpo, «A laicidade», Communio, 18(2001), nº 5, pp. 389
[2] Pierre De Charentenay, «La Charte européenne et la laïcité», Études, 2000, septembre, p. 153-164.
[3] Pierre De Charentenay, «La Charte européenne et la laïcité», p. 156.
[4] Pierre De Charentenay, «La Charte européenne et la laïcité», p. 156.
[5] Hermínio Rico, «O catolicismo face à laicidade. Resignação ou oportunidade?». Communio. 18(2001), nº 5, pp. 401.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.