Em julho deste ano, as Edições 70 publicaram uma tradução de um estudo importante da autoria de John W. O’Malley. Em Quando os bispos se reúnem. Um ensaio que compara Trento, o Vaticano I e o Vaticano II, o jesuíta e historiador da Igreja ajuda-nos a compreender os últimos três concílios ecuménicos naquilo que têm de comum e de diferente a partir de cada determinado contexto histórico.
Em vez de os analisar separadamente, com um olhar diacrónico, O’Malley adota uma abordagem sincrónica (cf. p. 13), na qual os concílios são observados em conjunto, em função de temas específicos. Dessa forma, tornam-se mais claras as posições que os vários concílios adotaram face a questões conjunturais, que historicamente enfrentaram, e a outras que permanecem perenes até aos nossos dias. Mas não é só a posição dos concílios que sobressai, como se de algo de puramente objetivo se tratasse: é a visão subjetiva do próprio autor que emerge da análise. Por isso, a abordagem de O’Malley pode ferir algumas sensibilidades, pois parece valorizar ou louvar, talvez com um cunho ideológico, mais o Vaticano II que o Vaticano I (o que se compreende, pois é natural que o concílio mais recente constitua para nós a norma). Essa reação face ao livro pode, com efeito, reforçar-se pelo facto de O’Malley simplificar as suas afirmações com um recurso constante a “generalizações” que, aliás, ele assume explicitamente: “as generalizações são úteis e precisam de ser feitas”.
Não obstante, parece-me que é aí que reside a originalidade e a força da análise. Porque, por um lado, as generalizações “levantam questões e fornecem um ponto de partida para uma análise e avaliação adicionais”. E porque, por outro, a narrativa assumida se torna clara no seu enredo, nas suas teses e nos seus argumentos. O livro é, assim, extremamente acessível, propondo-nos uma perspetiva do que é a Igreja: uma perspetiva que podemos aprofundar e avaliar.
Os concílios acabam por revelar que a Igreja nunca foi, nem pode ser, uma instituição a-histórica, imune às transformações que acompanham o evoluir do nosso mundo.
Segundo O’Malley, são três as questões mais gerais que “explicitamente ou, de maneira mais comum, implicitamente ocuparam estes concílios: o que deve um concilio fazer? O ensino da Igreja muda? Quem tem autoridade final na Igreja?”. No seu modo diversificado de enfrentar estas questões, os concílios acabam por revelar que a Igreja nunca foi, nem pode ser, uma instituição a-histórica, imune às transformações que acompanham o evoluir do nosso mundo. Enquanto Deus criou a partir do nada, os concílios nunca começaram “com um vazio”, diz-nos O’Malley, pois “havia uma realidade já existente que tinha de ser tida em conta, e era em relação a essa realidade que eles agiam e reagiam de várias maneiras”. A Igreja não é, de facto, “uma entidade que possa atravessar o mar da história sem ser alterada pela viagem”. Mas, tal como Newman ainda antes do Vaticano II referiu, a evolução das práticas e ensinamentos da Igreja nunca se fez em detrimento da fidelidade para com as suas origens.
Ao percorrer o livro de O’Malley, podemos sentir uma tensão entre continuidade com a Tradição e uma certa descontinuidade referente às inovações que vão sendo introduzidas. Se em Trento, face à Reforma protestante, se procurou um local de certa forma mais neutro, outro que Roma, nos dois últimos concílios optou-se pela centralidade do Vaticano. Se “Trento incorporou os teólogos (não bispos) como um órgão nos procedimentos oficiais do concílio”, os dois concílios ulteriores continuaram a atribuir um papel de relevo aos teólogos ainda que em outros moldes. Enquanto, em Trento, o “outro” dizia sobretudo respeito às igrejas separadas que brotaram da Reforma, e no Vaticano I a um certo liberalismo que aglomerava em si “o racionalismo, o ateísmo, a democracia, o desrespeito pela autoridade, o desdém pela tradição, o desprezo pela religião e a secularização radical da sociedade”, no Vaticano II, refere-se à humanidade no seu todo. Mais ainda: como O’Malley afirma (comentando a Unitatis Redintegratio sobre o ecumenismo, a Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa e a Nostra Aetate sobre o diálogo inter-religioso), no Vaticano II, mais do que responder contra algo ou alguém, sentiu-se “a necessidade de promover respeito pelos Outros”. Foi por isso que o Vaticano II se dirigiu “não aos católicos, não aos cristãos, não aos crentes, mas a todas as pessoas de boa vontade”. Dirigiu-se “ao Outro, que por isso mesmo a Igreja, em certa medida, já não vê como outro”.
Foi por isso que o Vaticano II se dirigiu “não aos católicos, não aos cristãos, não aos crentes, mas a todas as pessoas de boa vontade”. Dirigiu-se “ao Outro, que por isso mesmo a Igreja, em certa medida, já não vê como outro”.
É nesse sentido que se compreende o abandono do paradigma das condenações, formuladas numa linguagem mais jurídica, em prol de uma abordagem que coloca um especial enfase na “santidade”, assunto nunca antes “mencionado em concílios anteriores”. Embora no Vaticano II estejam ausentes certos termos que marcaram os documentos eclesiais de Trento e do Vaticano I (bem como de concílios anteriores), termos como “anátema” e “monarquia”, a continuidade entre os três não se desfaz completamente. Que o Vaticano II defina “a Igreja como uma instituição essencialmente reconciliadora” está em perfeita consonância com o espírito – se assim podermos dizer – de Trento, concílio que procurou consensos e evitar cismas. No mesmo sentido, a afirmação do Vaticano I, na Dei Filius, segundo a qual a razão natural pode chegar à compreensão de Deus como “princípio e fim de todas as coisas”, “a partir das criaturas”, é reafirmada no sexto parágrafo da Dei Verbum do Vaticano II. No entanto, enquanto uma tal afirmação se compreendia, no Vaticano I, sobretudo como a rejeição do racionalismo e do liberalismo exacerbados, no Vaticano II, a mesma afirmação de teor dogmático permitiu um olhar mais positivo sobre o mundo: por outras palavras, permitiu que Igreja estabelecesse um modo mais aberto de lidar com a mentalidade moderna. Assim, muito embora tanto os prelados do Vaticano I como os do Vaticano II tenham percebido que enfrentavam uma “situação cultural, política e social sem precedentes na história humana, uma situação que desafiava os fundamentos sobre os quais a Igreja e a sociedade estavam firmemente assentes”, “ao contrário dos bispos do Vaticano I, (…) os do Vaticano II estavam convencidos de que o tempo não podia voltar para trás”. O Holocausto e as Guerras Mundiais ajudam-nos a entender essa mudança de atitude por parte da Igreja, pois esses eventos dramáticos desfizeram, em certa medida, certos mitos de progresso próprios da modernidade liberal, contra a qual o Vaticano I se insurgia não sem veemência. Num tal contexto, foi mais fácil, aos bispos do século XX, aproveitar as “características positivas” da mentalidade moderna. É assim que vislumbramos uma tradição “dinâmica”: uma Igreja que no Vaticano I condena a liberdade promovida por certos regimes explicitamente hostis ao cristianismo, e que no Vaticano II reconhece o valor da liberdade religiosa e de consciência como um direito inaliável da pessoa humana. O facto de os papas terem, até ao século XIX, condenado tais liberdades deve ser compreendido no contexto de uma reação a um contexto histórico que, à época do último concílio, “já não se verificava”. Foi nesse novo contexto, de um mundo em constante mudança, que o Vaticano II abandonou o carácter “legislativo-judicial” dos concílios anteriores de forma a explorar, noutra linguagem e “em profundidade, a identidade da Igreja”, para assim regressar aos seus “valores mais profundos e proclamar ao mundo a sua sublime visão para a humanidade” (p. 143).
Dessa forma, o Concílio deixou uma marca na Tradição viva da Igreja que continua a fazer caminho. A encíclica Laudato Si’ é exemplo de uma evolução na esteira do Vaticano II, mais concretamente da Gaudium et Spes e da Dignitatis Humanae: a Igreja assume-se como uma voz de “paz”, de “compaixão”, de “direitos humanos” e adapta essa voz aos problemas que surgem no presente que habitamos. É nesse sentido que o reforço do papel das mulheres nas recentes nomeações do Papa Francisco para o Conselho Económico do Vaticano, entre outros cargos de liderança, surge na esteira do Concílio e da sensibilidade que hoje temos. Essa sensibilidade, manifestou-a o Cardeal belga, Léon-Joseph Suenens, ao reparar na “anomalia que era a ausência de mulheres no salão do concílio”. Já na altura, o Papa Paulo VI respondeu à inquietação de Suenens “nomeando sete mulheres de ordens religiosas e sete mulheres leigas, que como os homens foram auditoras no concilio”.
Nesse sentido, a Igreja continua a fazer caminho à procura de modos concretos que permitam um saudável equilibro entre estes dois polos, isto é, entre os “modos hierárquico e colegial de governação da igreja”.
Quanto ao governo da Igreja, sempre se afirmou que a relação entre bispos e papado foi, e deve continuar a ser, “hierárquica e colegial”. Embora os últimos concílios tenham colocado o acento num destes polos alternadamente, tendo sempre em conta a situação histórica à qual tinham de responder, “a questão que hoje ocupa a Igreja Católica não é (…) a questão teórica de quem a governa. O concilio Vaticano II respondeu a essa pergunta. A questão hoje é aquela a que o Vaticano II não teve oportunidade de responder: quais são os instrumentos apropriados para tornar a tradição colegial (sinodal) do governo da Igreja prática e eficaz?”. Nesse sentido, a Igreja continua a fazer caminho à procura de modos concretos que permitam um saudável equilibro entre estes dois polos, isto é, entre os “modos hierárquico e colegial de governação da igreja”.
Por fim, creio que é importante reter, conjuntamente e em tensão, três palavras que os padres conciliares do Vaticano II entenderam definir o seu concílio: o termo italiano aggiornamento, que significa adaptação, inculturação no mundo presente; o termo inglês development em vista do progresso de uma Tradição que se quer viva e com futuro; e, não com menor importância, a palavra francesa ressourcement, no sentido de regressar às fontes, às origens, de forma a manter-nos fielmente ligados ao passado. Preservar a integridade destes três aspetos na leitura e aplicação que fazemos do Concílio permite evitar dois perigos, quais tentações, que a Igreja hoje enfrenta: trata-se de evitar tanto a estagnação como a dissolução.
Outra tensão que a Igreja enfrenta e enfrentou nos últimos três concílios diz respeito ao confronto entre conservar o recebido e abrir-se às inovações que o Espírito suscita. Extremar ou absolutizar um destes polos levaria a Igreja a desfazer-se na história como uma instituição meramente humana ou a cristalizar-se em ensinamentos e práticas de museu. O equilíbrio exige que sejamos prudentes, de forma a manter um saudável equilíbrio entre estes dois extremos.
Fotografia Roberto Cardoso – Unsplash
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.