Como sair de um ecrã

Estamos cansados de estar fechados em casa e de ter de fazer tudo através de ecrãs. A minha esperança é a de que estes excertos, ainda que precisando do ecrã, possam ajudar a sair dele.

Para este texto bastará uma introdução breve: estamos cansados de estar fechados em casa e de ter de fazer tudo através de ecrãs. É óbvio que sabemos que a tecnologia e os média têm inúmeros benefícios, não é essa a questão. Trata-se antes de constatar a necessidade básica de sair de casa e comunicar com outros, corpo a corpo. De certo modo, sentimos que o confinamento, mesmo sendo indispensável, tem uma fatura pesada, não apenas económica, mas humana.

Nestas alturas de cansaço, nem sempre é fácil encontrar fontes saudáveis de equilíbrio e de descanso. A arte pode desempenhar um papel importante, neste contexto. É verdade que o triângulo realidade-arte-repouso não é linear. Bastaria ir a um museu de arte contemporânea, ou ouvir um concerto de Stravinsky (que tanto escreveu sobre este assunto, inspirando toda uma geração de compositores) para se perceber o quanto os artistas têm procurado libertar-se de uma ideia de imitação ou reprodução da realidade. E mesmo quando alguns deles sentem um certo dever deontológico de denunciar injustiças sociais, o efeito das suas obras raramente é pacificador ou ‘embevecedor’. Portanto, a arte provoca-nos. Aliás, para alguns, esse é o nervo que diferencia a arte do entretenimento (veja-se, por exemplo, a entrevista da Brotéria sobre a sua proposta cultural «Aos vossos lugares»).

Curiosamente, essa mesma arte chocante também pode ser terapêutica. Como? Longe de querer responder exaustivamente a esta pergunta (infindável), venho propor um exercício prático, usando breves sequências cinematográficas de três filmes: Gerry, de Gus Van Sant, Satantango, de Béla Tarr, e Sacrifício, de Andrei Tarkovsky. A minha esperança é a de que estes excertos, ainda que precisando do ecrã, possam ajudar a sair dele. Ou seja, creio que estes excertos nos podem ajudar a descansar do confinamento dos ecrãs.

Sobre a linguagem cinematográfica
Em outubro de 2019, o realizador Martin Scorsese, numa entrevista à revista Empire, provocou um pequeno terramoto em Hollywood ao dizer que olhava os filmes de super-heróis Marvel não como cinema de arte mas antes como parques temáticos. A polémica estalou de imediato: afinal, o que significa isso de «cinema»? Num artigo posterior, ao The New York Times, o realizador procurou esclarecer a sua visão, enquanto autor. Segundo ele, o cinema deveria servir como observatório da vida humana e, nessa medida, deveria «surpreender» ao pôr a nu algum aspecto submerso das nossas paixões.

Hitchcock, na sua longa conversa com o realizador-editor François Truffaut, deixava entender que, para si, o cinema é, antes de mais, uma forma de linguagem visual. Formado no período do cinema mudo, Hitchcock defendia que um realizador deveria ser capaz de comunicar recorrendo apenas (ou sobretudo) a imagens, e assim suscitar emoções (chocar) nos espectadores. Portanto, para ele, o cinema não é teatro filmado. Ali, não é tanto a palavra a comandar a ação, mas a câmara.

Retenhamos as definições de cinema de Hitchcock e Scorsese: (1) uma forma de investigação do coração humano; (2) uma linguagem visual que tem como gramática o movimento da câmara; (3) uma comunicação que toca as emoções e que dá que pensar. Finalmente, bastaria ver os filmes de ambos para perceber que o som (e, particularmente, a música) é um complemento valioso para esta forma de comunicação visual.

Os excertos
Algumas palavras gerais a respeito dos critérios para a escolha dos três excertos. Em primeiro lugar, tentei ser fiel à lição de Hitchcock: aqui, a palavra está praticamente ausente, é a imagem (e o som) que nos guia. Em segundo lugar, quis explorar o contraste entre o confinamento do espectador e a paisagem exterior, filmada. Como interagem o local exterior imaginado (do filme) e o espaço interior sentido (do espectador)? Será que o filme nos transporta para algum lado? Em terceiro lugar, em todos os excertos há movimento, o que de novo contrasta com a situação estática em que estamos. Finalmente, mesmo em silêncio, os três excertos evocam relações pessoais e pequenos dramas, de uma forma ao mesmo tempo simples (dir-se-ia pobre, austera) e poética. Na ausência de palavras e de detalhes, os excertos assumem uma dimensão quase iconográfica. Há uma solenidade ritual misturada na simplicidade das imagens, que nos remete para algo de silencioso, íntimo e vital. Somos conduzidos pelas imagens para um outro território, sem escapismos, mas com paz.

As notas que proponho para cada excerto focam-se apenas nas imagens, e não no guião global de cada filme (o artigo e a experiência seriam bem diferentes, decerto, se o fizéssemos; até porque estão longe de ser “filmes-pipoca”). São, por isso, intencionalmente sucintas, para favorecer uma experiência pessoal. Ou seja, não quis atrapalhar.

 

Gerry, de Gus Van Sant (2001)

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Trata-se da cena de abertura do filme. Do ponto de vista visual, os 5 minutos podem ser repartidos em cinco cenas: (1) traseiras de um carro em marcha; (2) 1º olhar sobre os passageiros; (3) o que vêem os passageiros; (4) 2º olhar sobre os passageiros (ofuscado); (5) o carro vazio. A sequência sugere três percursos simultâneos: um percurso exterior, do carro; os percursos interiores de cada uma das personagens. Para onde vão? Qual o seu destino? Como evolui a relação entre as personagens, ao longo do caminho?
A música Spiegel im Spiegel (“espelho no espelho”), de Arvo Pärt, pela sua circularidade, parece feita para nunca acabar, ao mesmo tempo que vai traçando um percurso em torno de um centro estático. Aplicada ao filme, ela como que se confunde com a estrada exterior, mas também com o movimento interior das personagens. Há uma riqueza emocional forte no conjunto, que resulta dos tons ocres da fotografia, do silêncio intenso das personagens, do diálogo entre piano e violoncelo; mas que vive também das nossas memórias de viagem, que são convidadas a subir àquele carro. Para onde nos leva, este vídeo?

Satantango, de Béla Tarr (1996)

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Béla Tarr ficou célebre pelas suas longas sequências de rostos e corpos em movimento. Aqui, acompanhamos dois homens que caminham por entre uma grande ventania. Por um lado, o par imagem-som tem o condão de nos mergulhar naquela rua: quase podemos sentir o desconforto e a vulnerabilidade das personagens, naquelas circunstâncias. Por outro, embora dure menos de 2 minutos, a sequência parece dilatar o tempo e o espaço, o que acentua a ideia de que cada segundo naquela estrada é custoso. A leveza dos objetos esvoaçantes torna o «peso do vento» e das circunstâncias ainda mais impetuoso. Ao mesmo tempo, há uma firmeza, uma persistência, uma força calada, nas personagens. O resultado é um retrato poderoso de resistência ao caos. Mais do que o vento a empurrar-nos, são as personagens que nos levam. Porque avançam? O que as mantém? Como resistem?

O Sacrifício, de Andrei Tarkovsky (1986)

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Trata-se da cena final do filme. Contudo, focando-nos apenas no excerto, podemos identificar quatro personagens: (1) o menino com os baldes; (2) a mulher de bicicleta; (3) a ambulância; (4) a árvore. A gramática visual sugere que o menino tem uma relação especial com a árvore. Percebe-se, também, que há uma distância entre a criança, a mulher pastora e a ambulância. A ambulância entrepõe-se entre ambos e, em seguida, tanto a mulher como a ambulância partem em direcções contrárias, deixando sozinho o menino.
Percebem-se três tipos de drama/ interrogações distintos: (1) as interrogações do menino; (2) as preocupações da mulher; (3) os afazeres da ambulância. Quem sabe se estas personagens evocam etapas da vida humana? A pergunta nada infantil da criança, debaixo da árvore («No princípio era o Verbo. Porquê, papá?»), obriga a reconsiderar o significado do seu gesto, aparentemente absurdo, de regar uma árvore seca. A esta luz, o conjunto regar-deitar-se à sombra-perguntar transparece como uma forma inesperada de sabedoria.
No seu todo, e independentemente do modo como interpretarmos, a cena atrai-nos e desperta emoções variadas. A ingenuidade e esperança da criança talvez nos faça sorrir; o afã da mulher pastora talvez nos pareça bucólico; a gravidade da passagem da ambulância talvez nos assombre; o diálogo da criança (com o pai? com a árvore? com Deus?) talvez nos questione; a presença silenciosa da árvore talvez nos intrigue. Em pouco mais de 5 minutos, um vídeo levou-nos muito longe.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.