Foi a 10 de dezembro de 1948 que a Assembleia Geral das Nações Unidas, num contexto marcado pelas feridas e pelo rescaldo de duas guerras à escala global, proclamou a Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH). 70 anos depois, cabe-nos a nós avaliar, aprofundar e tornar mais efetiva tal Declaração no mundo atual.
Por um lado, parece haver um consenso alargado quanto ao facto de muitas das ambições da DUDH ainda estarem por cumprir. Afinal, como se afirma no Preâmbulo da Declaração, trata-se de um “ideal comum” ao torno do qual devemos unir esforços de forma a que a dignidade de cada um seja respeitada o mais possível. No entanto, emergem, por outro lado, opiniões diametralmente opostas sobre possíveis alargamentos dos direitos universais. Há quem queira incluir, a título de exemplo, a identidade de género ou o aborto como um direito universal, quando outros consideram tais ‘direitos’ contrários à dignidade da pessoa humana (ao ter sobretudo em conta o 3º artigo da DUDH: “Todo o indivíduo tem direito à vida”).
Nesse sentido, parece-me importante aprofundar a questão de saber até que ponto os direitos humanos, solenemente proclamados, serão mesmo universais? Trata-se, por outras palavras, da questão de saber o que significa a universalidade de um direito.
A questão pode parecer redundante, até porque o artigo que inaugura a DUDH é explícito quanto ao significado de universal: “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade.” Contudo, para que se possa avaliar e aprofundar a DUDH, desde a sua origem, nos seus avanços e recuos, de forma a projetar o futuro, torna-se imperioso que se precise bem a resposta a esta questão.
Em primeiro lugar, ‘universalidade’ dos direitos significa que cada ser humano os detém. Consequentemente, e em segundo lugar, o termo também significa a sua aplicabilidade, ou concretização efetiva, na vida de cada detentor do direito (aqui, a universalidade já se relativiza consideravelmente). Por último, creio que o termo também diga respeito ao reconhecimento (e é neste aspecto que a universalidade se torna mais discutível). É claro que a dignidade da pessoa humana deve ser sempre respeitada mesmo quando nem todos a reconhecem. Mas, sem um reconhecimento que seja (na medida do possível) universal, dificilmente o direito em causa se tornará universalmente efetivo. Tanto assim é que a Assembleia Geral das Nações Unidas optou, no título da DUDH, por ligar o adjetivo ‘universal’ a ‘declaração’, em vez de o vincular diretamente ao termo ‘direitos’: Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Mais do que alargar a Declaração a novos direitos, que estão bem longe de ser consensuais, deve-se zelar sobretudo pelo cumprimento dos direitos básicos e fundamentais, que já constam nos documentos oficiais assinados por um número significativo de Estados membros.
Por isso, mais do que alargar a Declaração a novos direitos, que estão bem longe de ser consensuais, deve-se zelar sobretudo pelo cumprimento dos direitos básicos e fundamentais, que já constam nos documentos oficiais assinados por um número significativo de Estados membros. Parece-me perigoso estender os direitos humanos em função dos paradigmas ideológicos hodiernos, pois isso poderia diminuir a sua universalidade a ponto de os tornar irrelevantes. Ao alargar excessivamente os direitos individuais, correríamos o risco de aumentar o número de pessoas que não os reconhecem, fragmentando assim ainda mais as nossas sociedades. E, para além da consequente desagregação social, dificilmente os direitos se tornariam efetivos sem esse reconhecimento.
Além disso, o ‘peso da realidade’ parece, por vezes, não querer respeitar a dignidade de cada pessoa humana. Num mundo marcado por crises económicas e sociais, ligadas aos problemas estruturais das dívidas soberanas, às migrações e às mudanças climáticas, não é fácil assegurar, mais numas regiões do globo que noutras, uma vida digna para todos.
Neste contexto atual, devemos procurar fazer convergir sinergias de forma a tornar os direitos humanos já proclamados cada vez mais efetivos. É por isso que fico, por vezes, reticente perante o facto de palpitarem no espaço público vozes defensoras de causas fraturantes, cujos princípios já estendem os direitos mesmo a seres não humanos, quando se violam ao mesmo tempo os direitos mais básicos de certas comunidades minoritárias, começando pelos direitos à vida e à não discriminação religiosa. Refiro-me à situação das minorias cristãs, não só no médio oriente, bem como de outras minorias, cuja dignidade de pessoa está longe de ser respeitada em várias partes do planeta.
Talvez, a desproporção entre a defesa dos “novos” direitos individuais e uma quase indiferença para com as violações sistemáticas dos direitos básicos destas minorias seja uma consequência do fosso alargado entre as economias ocidentais e o resto do mundo, fosso esse que, infelizmente, tem vindo a solidificar-se. Como disse recentemente o Papa Francisco, pela ocasião da Conferência Internacional intitulada “Os direitos humanos no mundo contemporâneo: conquista, omissões, negações”: “enquanto uma parte da humanidade vive na opulência, uma outra parte vê a própria dignidade desconhecida, desprezada e os seus direitos fundamentais ignorados ou violados.”
Nesta conferência, promovida pelo Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral e pela Pontifícia Universidade Gregoriana, o atual Soberano Pontífice sublinha o facto dos “direitos e liberdades fundamentais” provirem da dignidade inalienável de cada pessoa humana.
Ao conceberem a pessoa humana como sendo criada à imagem e semelhança de Deus, a religião e a teologia cristãs corroboram o valor inalienável desta dignidade, sem prejuízo do princípio relativo a uma sã laicidade.
Ao conceberem a pessoa humana como sendo criada à imagem e semelhança de Deus, a religião e a teologia cristãs corroboram o valor inalienável desta dignidade, sem prejuízo do princípio relativo a uma sã laicidade. Tal como afirma o Concílio Vaticano II: a “dignidade da pessoa humana como a palavra revelada de Deus e a própria razão a dão a conhecer”; “Pois Deus tem em conta a dignidade da pessoa humana, por Ele mesmo criada” (Dignitatis Humanae §2, 11).
Por último, é interessante notar os termos com que o Papa define o sujeito da Declaração: a “família das Nações quis reconhecer a igual dignidade de cada pessoa humana.” O termo “família” que o Papa adopta associa-se naturalmente ao “espírito de fraternidade” a partir do qual, segundo o 1º artigo da DUDH, devemos “agir uns para com os outros.” Sem este “espírito de fraternidade”, é difícil reconhecer a pessoa do outro em igual dignidade, até porque os direitos do outro impõem deveres para comigo. Ou seja: sem o “espírito de fraternidade”, corro o risco de defender (apenas) os meus direitos individuais, deixando desvanecer assim o seu caráter universal.
Links:
http://www.mp.go.gov.br/portalweb/hp/7/docs/declaracao_universal_dos_direitos_do_homem.pdf
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.