Depois da série de quatro longas entrevistas que Joseph Ratzinger, ou Bento XVI, concedeu a Peter Seewald – O Sal da Terra (1996), Deus e o mundo (2000), A Luz do Mundo (2010) e Últimas Conversas (2016) –, o jornalista alemão apresenta agora uma biografia autorizada do Papa emérito. Benedikt XVI. Ein Leben faz, naturalmente, a apologia do Papa emérito (como Massimo Faggioli fez questão de referir), ou não fosse Peter Seewald um jornalista que se converteu ao catolicismo a partir do contacto com a obra de Joseph Ratzinger e a sua pessoa.
Seja como for, este livro com mais de mil páginas tornar-se-á incontornável para quem quiser estudar a vida e o pensamento deste teólogo, deste bispo e pastor, deste Papa (em exercício e emérito). Muito bem documentado, Seewald ajuda-nos a compreender as posições, por vezes polémicas, de Ratzinger em relação ao modo de receber e interpretar o Concílio Vaticano II, a teologia da libertação, o diálogo ecuménico e inter-religioso, o papel das mulheres na sociedade e na Igreja, o relativismo da mentalidade contemporânea…
Sem dúvida, estamos diante de alguém que foi, e permanece, profundamente fiel à Igreja e à fé que professa, ao mesmo tempo que se mantém intelectual e espiritualmente independente. Nesse sentido, Ratzinger mostra-nos o que quis dizer Chesterton ao afirmar que só a Igreja Católica seria capaz de nos livrar da terrível “escravidão” de apenas se ser “filho do tempo” (cf. The Catholic Church and Conversion, chap. V). Esta liberdade ou independência em relação ao tempo manifesta-se, por um lado, na sua capacidade em discordar com a mentalidade em voga, sem deixar que a Igreja se torne, apesar disso, num simples museu de coisas antigas. A mesma liberdade permite-lhe, por outro, introduzir “novidades” na Tradição viva da Igreja e divergir em certa medida, e sempre com respeito obediente, de um Papa como João Paulo II (demonstra-o, a título de exemplo, a sua posição em relação ao célebre Encontro de Assis).
Como não poderia deixar de ser, o livro termina com uma breve entrevista que completa as últimas Conversas finais. A generalidade dos meios de comunicação social, inclusive os mais ligados à Igreja, parece reduzir o conteúdo das declarações de Bento XVI a uma condenação virulenta do casamento entre “pessoas do mesmo sexo” ou “do aborto”, como expressões do “Anticristo”. Tem razão o P. Edgar Clara (no artigo que escreve no semanário SOL): trata-se de uma “narrativa” enviesada que descreve um “homem ultrapassado no seu pensamento”.
A generalidade dos meios de comunicação social, inclusive os mais ligados à Igreja, parece reduzir o conteúdo das declarações de Bento XVI a uma condenação virulenta do casamento entre “pessoas do mesmo sexo” ou “do aborto”, como expressões do “Anticristo”.
É verdade que Bento XVI, num discurso sobretudo ad intra – convém dizê-lo –, chama a atenção para um certo tipo de “ditadura ideológica”, que talvez se imponha sub-repticiamente nas sociedades ocidentais hodiernas, parecendo por vezes limitar a liberdade de opinião e a discussão aberta sobre as várias questões que hoje enfrentamos. É interessante, a esse propósito, notar como Ratzinger emprega o termo “excomunhão” num sentido negativo, como se ele se sentisse, sem razão nem justiça, “socialmente excomungado”. Além disso, ao condenar o aborto, a eutanásia e a produção laboratorial de seres humanos, o Papa emérito não mostra apenas a sua fidelidade à doutrina da Igreja: trata-se, sobretudo, de defender a dignidade da pessoa humana e de promover o humanismo cristão que para ele é o mais genuíno. Talvez Bento XVI venha a desenvolver todas essas questões no “testamento espiritual” que nos deixará como herança (sim, ficámos a saber que tal testamento já foi escrito e que provavelmente só será publicado depois do término da sua vida terrena).
Em todo o caso, há mais na entrevista para além das alusões ao “Anticristo”. O tema principal, aliás, diz respeito à incontornável renúncia de 2013. Esta conversa, talvez a última com Peter Seewald, concentra-se praticamente apenas neste evento marcante da Igreja do terceiro milénio, bem como no título que Bento XVI se atribui a si mesmo: o de Papa emérito.
Em primeiro lugar, ficamos a saber que a sua renúncia se compreende apenas no horizonte da fé e da vida espiritual. Não se trata de uma estratégia política ou de uma reação, ao mesmo nível (meramente político), em face de uma Cúria irreformável e corrupta. Nem tão pouco se deve aos escândalos do Vatileaks, como certos jornalistas fizeram crer. Com a clareza a que nos habituou, Bento XVI lembra, a este propósito, que ele era o Papa, não só da Cúria, mas “de toda a Igreja”. E é esta Igreja que hoje enfrenta uma “crise”; sobretudo “de fé” e da “existência cristã”. É esta Igreja que precisava do gesto humilde de quem aceita a sua fragilidade, de quem reconhece que deve abdicar do cargo, permanecendo connosco na qualidade de Papa emérito.
Em segundo lugar, Bento XVI situa a sua renúncia no desenvolvimento da Tradição da Igreja. Ele recorda que Paulo VI e João Paulo II, seus predecessores, haviam admitido que uma doença grave poderia incapacitá-los no desempenho adequado das suas funções. Nesse sentido, assinaram um documento que garantisse o governo da Igreja em situações excepcionais, como no caso de demência de um Papa. Bento XVI foi assumidamente mais longe, pois para ele ficou claro que a destituição do cargo seria possível noutras circunstâncias menos dramáticas. Deste modo, enquanto Peter Seewald confessa, a páginas tantas, que o gesto de Bento XVI inaugurou uma “nova tradição na Igreja Católica”, o Papa emérito considera que a novidade é possível quando se acolhe fielmente a herança dos predecessores e se vive livremente o tempo ao qual a Providência nos destinou, sempre no Espírito que conduz a Igreja. Que de uma “novidade” se trate, Bento XVI assume-o ao dizer que o seu gesto nada tem que ver com a renúncia de Celestino V, em 1294, cujo túmulo visitou em 2009, já na qualidade de Papa.
Em terceiro lugar, a “novidade” introduzida pelo gesto da renúncia faz-se acompanhar pelo título, refutado por certos teólogos e historiadores da Igreja, de “Papa emérito”. Peter Seewald convida Bento XVI a fazer a apologia dessa designação. A linha de argumentação, mais uma vez, começa por situar a renúncia de 2013 no desenvolvimento fiel da Tradição da Igreja. Até ao Vaticano II, lembra-nos Ratzinger, a renúncia de um bispo parecia ser ininteligível. A solução passava por atribuir uma região “fictícia” ao bispo que deixasse de exercer autoridade na sua diocese “real”. Percebeu-se, contudo – e graças ao bispo de Passau, Simon Konrad Landersdorfer –, que qualificá-lo de “emérito” exprimiria melhor a realidade de um bispo que abdica do exercício efetivo da sua “potestas” numa determina diocese, mantendo-se, apesar de tudo, espiritualmente vinculado aos seus fieis, à Igreja. Assim, na medida em que o Papa é “bispo de Roma”, é possível atribuir-lhe, depois da sua renúncia, o adjetivo “emérito”.
Ao prescindir do seu exercício, Bento XVI reforça a sua autoridade espiritual, inaugurando um outro modo de ser e de viver enquanto Papa, enquanto cristão, enquanto Homem.
Bento XVI propõe ainda neste contexto um exemplo ligado aos camponeses da Baviera, onde o pai, em certas circunstâncias, sobretudo ao chegar a uma idade avançada, podia abdicar de certos direitos e obrigações jurídicas para com os seus filhos. Essa situação mostra, no entender do Papa emérito, como a paternidade não é apenas “ontológica”, mas também “funcional”. A analogia dos camponeses bávaros expressa a importância de uma ligação espiritual que deve ser mantida (e juridicamente reconhecida), mesmo quando a função não é, nem deve continuar a ser, exercida.
É por isso que o Papa emérito se sente livre para se pronunciar sobre os problemas que nos afetam hoje em dia, sempre que tal lhe seja solicitado, quer pelo Papa em exercício, quer por outros membros da Igreja, sempre que as suas palavras não interferirem diretamente no ofício próprio do Sucessor de Pedro. A este propósito, é interessante notar como reage Bento XVI aos dubia que quatro cardinais levantaram em relação à Exortação Apostólica Amoris laetitia. À questão de saber se o Papa Francisco lhes deveria ter respondido, ou se poderia ter feito melhor, Bento XVI evita uma resposta direta, por considerar que não deve interferir diretamente em questões que dizem apenas respeito ao governo da Igreja. Remete-nos, contudo, para a sua última Audiência Geral, em 27 de fevereiro de 2013, um dia antes do término do seu pontificado: convém seguir o espírito silencioso da bondade de Deus, que contrasta com o mau espírito capaz de denegrir a “alegria” do ser cristão.
As palavras sinceras de Bento XVI mostram-nos uma pessoa profundamente humilde e cheia de humanidade; alguém que diz ter aceite a rápida canonização do seu predecessor, João Paulo II, por respeito à piedade popular e por se deixar tocar pelo seu exemplo de vida.
Nesta curta entrevista, ainda houve tempo para falar do livro de Giorgio Agamben: Il mistero del male. Benedetto XVI e la fine dei tempi (2013). Segundo o filósofo italiano, com o seu gesto de renúncia, Bento XVI antecipou a escatologia do final dos tempos, onde se espera que a “Babilónia” se separe definitivamente da “Jerusalém celeste”. Nesta perspectiva, a renúncia seria uma chamada de atenção que nos desperta (Weckruf) para uma lógica diferente da do poder. Ao prescindir do seu exercício, Bento XVI reforça a sua autoridade espiritual, inaugurando um outro modo de ser e de viver enquanto Papa, enquanto cristão, enquanto Homem.
Esta observação de Agamben leva Bento XVI a comentar uma tese famosa de Santo Agostinho. O corpo de Cristo, a Igreja, é composto por pessoas que parecem pertencer-lhe, mesmo sendo-lhe distantes, e por outras que, parecendo estar exteriormente fora, lhe prestam verdadeira obediência. O desafio que enfrentamos é sermos genuínos membros do Corpo de Cristo, comungando cada vez mais autenticamente do seu modo de vida. Não é prudente julgar os outros, no agora que habitamos, rotulando categoricamente quem está dentro e quem está fora, quem é bom ou mau cristão, antes que o Senhor separe definitivamente o trigo do joio.
De resto, as palavras sinceras de Bento XVI mostram-nos uma pessoa profundamente humilde e cheia de humanidade; alguém que diz ter aceite a rápida canonização do seu predecessor, João Paulo II, por respeito à piedade popular e por se deixar tocar pelo seu exemplo de vida; alguém que é fiel a Francisco, não só por ele ser o Papa em exercício, mas também por ter Bergoglio como um verdadeiro amigo; tratando-se, ainda por cima, de uma amizade que tem crescido ao longo do atual pontificado. Tudo isso afirma Bento XVI nesta breve entrevista.
Fotografia: Tadeusz Górnyderivative – Stevertigo Talk
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.