Bagagem de exilado: profecia e poesia em tempos de confinamento

Quando aceitarmos o desprendimento das muitas coisas que nos tolhem o andar para aceitar possuir apenas o que cabe numa pequena bagagem de exilado, talvez possamos caminhar com um coração livre.

Há pelo menos uma diferença entre um poeta e um profeta. Ambos vivem das palavras, mas para o profeta a palavra é dita não apenas com palavras, mas também com gestos e com ações carregadas de simbólica.

Falar da Irmã Lúcia é falar de poesia, sobretudo quando escreve a experiência de 1916 e 1917 com a clareza das palavras onde perpassa a luz imensa que é Deus. Mas é também falar de profecia, de anúncio de uma palavra de esperança para o nosso tempo.

A teologia contemporânea tem referido que uma chave de leitura capaz de clarificar a vida dos três Pastorinhos e, mais amplamente, a vida de Lúcia de Jesus, é o profetismo do tempo da Igreja. Tem-se aprofundado a convicção de que o «Espírito Santo continua a dar o carisma profético a homens e mulheres que acreditam em Cristo, no tempo da Igreja, tal como suscitou os profetas do Antigo e do Novo Testamento»[1].

E falar de Lúcia, num momento como o nosso, marcado pela pandemia que a todos nos toca, pode ser particularmente desafiador ao mesmo tempo que é portador de esperança. Afinal, há cem anos, Lúcia anunciava a mensagem que recebera do Céu a um mundo marcado pela doença e a morte, a solidão e a pobreza, consequências de uma outra pandemia. Enfim, uma época marcada por uma dor que em tanto se assemelha à deste tempo. Trazer luz e esperança às horas difíceis da humanidade é a missão de qualquer profeta.

Gosto de pensar a Lúcia através do olhar e da experiência de Ezequiel, o profeta que Deus suscitou no período que compreende o exílio de Israel na Babilónia, um dos momentos mais duros da experiência desse povo. Quando Deus manda Ezequiel partir de Jerusalém diz-lhe: «Tu, filho de homem, prepara a tua bagagem de emigrante e sai de dia, à vista deles. (…) Prepararás as tuas coisas como bagagem de exilado, de dia, à vista deles» (Ez 12, 1-4).

Nas Memórias que Lúcia escreve, por obediência, encontram-se, ainda que não o desejasse ou suspeitasse, os traços de uma autobiografia teológica, ou seja, a evidência de que a narrativa que Lúcia faz de si mesma é já um falar de Deus, um dizer algo sobre o Seu agir na sua história.

Nas Memórias que Lúcia escreve, por obediência, encontram-se, ainda que não o desejasse ou suspeitasse, os traços de uma autobiografia teológica, ou seja, a evidência de que a narrativa que Lúcia faz de si mesma é já um falar de Deus, um dizer algo sobre o Seu agir na sua história.

Há um episódio narrado nas Memórias que considero profundamente simbólico. A 16 de junho de 1921, Lúcia deixa Fátima, após o encontro com o Bispo de Leiria, que lhe pede que vá para o Porto. Tem o coração cheio de saudades da família e dos lugares da sua infância, que vai deixar. Tem o coração comprimido pelo medo do futuro incerto, pela angústia do desconhecido. É na Cova da Iria que encontrará a força para repetir o seu sim. E parte. Deixa os lugares da sua infância. Deixa a sua infância. Lúcia parte, talvez com a consciência de que será emigrante em terra estrangeira. Parte com a sua bagagem de exilada, uma pequena mala de viagem que a mãe lhe comprou em Leiria.

Sobre essa mala, Lúcia escreve na Sexta Memória: «Ainda conservo esta mala, que me tem acompanhado pela vida fora: é a que levava para férias, com as minhas poucas coisas; levei-a para Espanha, quando fui para religiosa; levava-a todos os anos para a praia, quando por ordem do médico, ia tomar banhos de mar; trouxe-a para Portugal, quando regressei, em 1946; (…) com licença das minhas superioras, é aí que guardo algumas coisas pessoais, que me dizem respeito»[2]. Quando, em 25 de março de 1948 entra no Carmelo de Coimbra, o que leva consigo é aquela mala, na qual ainda sobrava espaço após lá ter colocado as poucas coisas que transportava.

Uma pequena mala é tudo o que possui, quando deixa a infância e entra na juventude e quando deixando a juventude entra na maturidade de uma vida entregue a Deus, na radicalidade da vida consagrada.

Como nos interpelam as poucas coisas que Lúcia transporta consigo pela vida fora! A pobreza real da bagagem de exilada deixa espaço para o essencial da vida: a sua relação com Deus e a sua missão, a bondade partilhada com quem encontra no caminho.

Creio que podemos aprender de Lúcia a atravessar as diferentes estações da vida sempre com o passo leve e a bagagem constituída sobretudo pela memória agradecida por tudo quanto o Senhor nos permite viver. Afinal, tudo passa. E tudo é graça.

Creio que podemos aprender de Lúcia a atravessar as diferentes estações da vida sempre com o passo leve e a bagagem constituída sobretudo pela memória agradecida por tudo quanto o Senhor nos permite viver. Afinal, tudo passa. E tudo é graça.

É certo que o tempo é duro, que a incerteza nos fere mais do que a dor no peito que este vírus provoca, que a solidão nos queima mais do que a febre, que a desolação nos pesa mais do que a distância social. Ainda assim, somos convidados a confiar na promessa do Coração Imaculado de Maria que nos visitou, através da Lúcia: «o meu Imaculado Coração será o teu refúgio… Eu nunca te deixarei…». É o convite a confiar na promessa do Senhor, ecoada na Cova da Iria: «Coragem. Eu venci o mundo…».

Quando aceitarmos o desprendimento das muitas coisas que nos tolhem o andar para aceitar possuir apenas o que cabe numa pequena bagagem de exilado, talvez possamos caminhar com um coração livre, talvez estas palavras, cheias de profecia e de poesia, ecoem mais límpidas e significativas, trazendo luz ao nosso olhar sombrio.

[1] Cf. Franco Manzi, As crianças-profetas de Fátima: o olhar de três crianças sobre os Ressuscitados, Santuário de Fátima, Fátima, 2018, p. 25.
[2] Lúcia de Jesus, Memórias da Irmã Lúcia II, Secretariado dos Pastorinhos, Fátima, 2010, p. 176-177.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.