Aulas vintage

Se instrumentalizarmos o estudo das Artes e o tornarmos numa mera aportação da competência da criatividade a um programa de desenvolvimento das Ciências, estaremos a ignorar a imensidão do contributo das Artes e Humanidades para a formação.

Desconheço a existência de uma definição consolidada do conceito de «educação STEM» (Science, Technology, Engineering and Mathematics), mas é possível deduzir uma a partir dos vários documentos e projetos que estão disponíveis na internet sobre o tema. A abordagem educativa STEM é uma metodologia que mobiliza e relaciona conhecimentos da Ciência, da Tecnologia, da Engenharia e da Matemática como base de uma investigação associada à resolução de problemas reais ou realistas, desenvolvendo ao mesmo tempo competências como a comunicação, o pensamento crítico e o trabalho em equipa.

Esta iniciativa surgiu nos anos 90 nos Estados Unidos como medida para contrariar o desinteresse dos jovens norte-americanos pelas áreas STEM e melhorar o seu desempenho académico. Do ponto de vista pedagógico, a abordagem que a educação STEM propõe é interessantíssima. Em primeiro lugar, ao basear-se a aprendizagem na resolução de um problema real ou realista, está-se a investir de forma certeira na motivação dos alunos. Explicitar a importância do que se vai aprender, relacioná-lo com contextos em que seja visível a sua utilidade e, sobretudo, realizar atividades que transcendam as aulas por via da aplicabilidade imediata e real do que se aprendeu são fatores motivacionais extraordinários. Em segundo lugar, estão amplamente estudadas as vantagens das abordagens multidisciplinares nos mais diversos âmbitos, pelo que planificar o ensino de disciplinas distintas de maneira integrada, interdisciplinar permite que os alunos cruzem e relacionem conhecimentos de áreas científicas diferentes, enriquecendo as conclusões a que chegam e tornando mais sólidas as propostas que apresentam. Finalmente, considerando que é expectável que a implementação do ensino STEM seja feita com recurso à metodologia de projeto, não é de todo despiciendo o valor que daí resulta em termos de desenvolvimento de soft skills, consideradas fundamentais num mundo VUCA (Volatile, Uncertain, Complex and Ambiguous).

Estão amplamente estudadas as vantagens das abordagens multidisciplinares nos mais diversos âmbitos, pelo que planificar o ensino de disciplinas distintas de maneira integrada, interdisciplinar permite que os alunos cruzem e relacionem conhecimentos de áreas científicas diferentes, enriquecendo as conclusões a que chegam e tornando mais sólidas as propostas que apresentam.

Em 2011, e como consequência de algumas vozes nos Estados Unidos que consideravam que a educação STEM marginalizava as Artes e as Humanidades, o acrónimo foi enriquecido para STEAM, passando a integrar o A de “Arts”. Ainda que não tenha acompanhado de forma próxima a discussão que conduziu a essa mudança, creio que não errarei ao vislumbrar aqui um episódio curioso da já longa novela sobre a importância das Artes e Humanidades nos currículos escolares. Escrevo curioso porque, considerando o modo como foi lançada a abordagem STEM nos anos 90, não seria expectável que ela viesse a ocupar território das Artes e das Humanidades, a tal ponto de os especialistas e professores destas áreas se verem na obrigação de o reivindicar. Sublinho que, na origem do ensino STEM, esteve a necessidade de combater o baixo desempenho dos alunos norte-americanos nas áreas da Ciência, da Tecnologia, da Engenharia e da Matemática. Não vejo a necessidade de incluir as Artes e as Humanidades num modelo com este objetivo. A não ser que, por alguma razão especiosa, se considere que a educação STEM deva ser a abordagem dominante no sistema educativo, situando desse modo as disciplinas STEM no centro do currículo e atribuindo às restantes disciplinas um papel secundário. Se assim for, o episódio deixa de ser curioso e passa a ser preocupante. Infelizmente, foi isso que aconteceu nos Estados Unidos, onde o ensino STEM foi visto pelos seus críticos como fazendo parte de uma tendência com várias décadas no sentido de desvalorizar o ensino das Artes no currículo do ensino não superior norte-americano. Compreende-se o descontentamento dos críticos, mas aquilo a que deu origem parece mais um paliativo do que uma solução efetiva.

Do lado de cá do Atlântico, o nosso Ministério da Educação também se vinculou ao ensino STEM através da parceria com o projeto STE(A)M – IT[1]. Chamou-me a atenção o facto de as Artes terem sido colocadas entre parêntesis e fui consultar a descrição do projeto, em particular a explicação do A parentético: «Recently, the term STEM has been expanded to include A, representing Arts, as a way of highlighting the importance of creativity in STEM education […]». Correndo o risco de ser injusto porque se trata apenas da descrição do projeto, que será diferente da respetiva implementação, não posso deixar de observar que não é um bom cartão de visita reduzir a inclusão das Artes no ensino STEM a uma forma de sublinhar a importância da criatividade. De qualquer modo, acrescentar o A ao acrónimo STEM ou justificar a inclusão das Artes num modelo de ensino como forma de sublinhar a importância da criatividade parece-me que encerram o mesmo problema: ignoram a importância das Artes e das Humanidades.

Como referi mais acima, considero a abordagem STEM muito interessante, mas apenas na medida em que não implica que se descurem outras áreas em benefício das Ciências. O Ministério da Educação promove bons programas nas áreas das Artes e das Humanidades, uns mais conhecidos, como o Plano Nacional de Leitura, outros menos conhecidos, como o Plano Nacional das Artes, o Plano Nacional do Cinema ou o Programa de Educação Estética e Artística. Ora, do mesmo modo que não concebo uma implementação de um Plano Nacional do Cinema que descure a Tecnologia, também não concebo uma abordagem STEM que descure a Literatura. Mas nem o PNC precisa de ser PNCT nem a abordagem STEM precisa de ser STELM para que haja relação e cruzamento de conhecimentos. É porque os programas coexistem de forma autónoma que se respeitam mutuamente. E porque se respeitam mutuamente, os respetivos conhecimentos e competências vão acabar por se cruzar em algum ponto. Todavia, se instrumentalizarmos o estudo das Artes e o tornarmos numa mera aportação da competência da criatividade a um programa de desenvolvimento das Ciências, estaremos a ignorar a imensidão do contributo das Artes e das Humanidades para a formação dos nossos alunos.

Todavia, se instrumentalizarmos o estudo das Artes e o tornarmos numa mera aportação da competência da criatividade a um programa de desenvolvimento das Ciências, estaremos a ignorar a imensidão do contributo das Artes e das Humanidades para a formação dos nossos alunos.

As Humanidades, como o próprio nome indica, traduzem o conhecimento da humanidade, o conhecimento das pessoas cujos problemas a abordagem STEM deve resolver. No romance Fala-lhes de Batalhas, de Reis e de Elefantes, de Mathias Énard, quando Miguel Ângelo é contratado para conceber a ponte sobre o Corno de Ouro, não começa por fazer cálculos complexos sobre Física e materiais. Nos primeiros tempos, deambula pela cidade para conhecer as pessoas nos seus ofícios, no lazer, na vida familiar, não se cansando de «passear e de armazenar imagens, rostos e cores». As STEM são ferramentas ao serviço da humanidade, e não podem ignorar a sabedoria de que as Artes e as Humanidades são depósito. Como resolver os problemas da sociedade se não conhecemos as pessoas? Quando Miguel Ângelo tem a visão da sua ponte, o narrador descreve-a como «uma ponte surgida da noite, amassada com a matéria da cidade».

Se perguntasse aos meus alunos de Clássicos da Literatura que problemas gostariam de resolver, entre outros que poderiam surgir, tenho a certeza de que apareceria o problema da guerra, não apenas na Ucrânia, mas também noutros sítios. A Ciência, a Tecnologia, a Engenharia e a Matemática ajudam a resolver os problemas das guerras, pondo-lhes fim com armamento cada vez mais preciso ou cada vez mais destrutivo. Mas, enquanto humanidade, temos de ambicionar outras soluções que assentem na história das pessoas.

Contrariando o pensamento que eleva o ensino STEM a uma posição dominante, os meus alunos de Clássicos da Literatura entram entusiasmados todas as segundas-feiras para uma aula em que não vão resolver problemas concretos do mundo real e não perdem a motivação por isso. Usam a engenharia do giz a deslizar na ardósia e o computador sempre que é necessário. Usam livros em papel e tomam notas neles com a tecnologia do lápis. Outras vezes, tomam notas em caderninhos que usam apenas para esta disciplina. Tomam notas não porque a matéria vá sair num teste (não é assim que são avaliados) ou porque queiram aplicar esses conhecimentos no mundo real, mas porque gostam de tomar nota de reflexões acerca de tópicos com que se vão deparando nas suas vidas, aos quais optam por não serem indiferentes, e para os quais encontram ecos nos textos literários. São alunos de Ciências, de Economia, de Artes e de Humanidades, gostam muito das áreas em que serão futuros profissionais e sabem convocar conhecimentos sobre Biologia quando entendem que podem iluminar uma leitura da aula de Clássicos da Literatura. À sua maneira, sabem que são disciplinas separadas para que a importância de cada uma não se dilua numa junção que pode ser infértil, ao mesmo tempo que têm consciência da validade das abordagens multidisciplinares. Se lhes perguntarmos qual a aplicação no mundo real do que aprendem ali, talvez tenham dificuldade em responder, embora tenham a resposta pronta se lhes perguntarmos se o que aprendem ali é útil. Não procuram encontrar no Cândido, de Voltaire, uma maneira eficaz de armazenar a energia fotovoltaica, mas esperam encontrar ideais, sonhos, ilusões, desilusões, amores, guerras. Esperam encontrar a complexidade das pessoas.

As STEM são ferramentas ao serviço da humanidade, e não podem ignorar a sabedoria de que as Artes e as Humanidades são depósito. Como resolver os problemas da sociedade se não conhecemos as pessoas?

No site do projeto STEAM ON[2], lemos que se pode considerar a abordagem STEAM «mais divertida que o ensino tradicional», indo ao encontro «das expectativas dos alunos», depreendendo-se que a expectativa coincide com o reconhecimento da utilidade. Na última segunda-feira, dei por mim a perguntar-me se os meus alunos de Clássicos da Literatura achariam as aulas divertidas, mas abandonei a preocupação porque tenho sérias dúvidas de que o critério “divertido” tenha sido determinante para a escolha da disciplina. Não sei exatamente o que se entende por ensino tradicional, mas, se este se opõe ao ensino STEM, então as aulas de Clássicos da Literatura, nas quais não se resolvem problemas nem se trabalham conhecimentos com aplicabilidade prática imediata, são ensino tradicional. Na lógica de um domínio de ensino STEM, não são úteis. Porém, as aulas vão ao encontro das expetativas dos alunos, e não se pode dizer que a sua expetativa seja a da inutilidade. O que acontece é que eles sabem onde encontrar a utilidade objetiva dos conhecimentos. Vibram com Ciência e Tecnologia e gostam de encontrar soluções para problemas quando trabalham com a abordagem STEM na disciplina de Física. Repito: a metodologia STEM é altamente eficaz. Mas isso não se sobrepõe ao trabalho dos alunos nos Clássicos da Literatura e disciplinas similares, porque nem a metodologia é transferível.

Como os termos “clássico” e “tradicional” são muitas vezes usados para dar conta de realidades desinteressantes, espero que eles se refiram às aulas de Clássicos da Literatura como aulas vintage e inúteis. Inúteis no sentido do poema “O inútil”, de Thomas Merton, que «mostra/ a necessidade absoluta/ do “inútil”».

 

[1] https://steamit.eun.org/about-the-project/our-objectives/
[2] http://www.steamon.eu/s/index.php/pt/

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.