As singularidades perigosas do desporto em Portugal

Assistimos hoje e cada vez com mais regularidade a “outros confrontos desportivos” de uma ferocidade extrema não tanto por atletas ou equipas técnicas mas por espectadores e adeptos, por dirigentes, comentadores e jornalistas que negam tudo aquilo que o desporto deve ser.

É preciso saber honrar os dois lados da contenda apesar de no final só haver um vencedor.

Haverá dúvidas sobre a importância decisiva do desporto para o desenvolvimento e para a paz do mundo? Haverá dúvidas sobre a relevância da prática desportiva como contributo para uma vida mais saudável e um direito essencial para indivíduos de todas as idades, de todas as raças, de todas as culturas, e como combate exemplar às divisões culturais ou étnicas? E haverá ainda dúvidas sobre o valor educativo do desporto e o seu papel decisivo no desenvolvimento das crianças e jovens e na transmissão de valores fundamentais como o respeito, a cooperação, o fair-play, a partilha, o espírito de sacrifício….!

De facto, o desporto é hoje um direito essencial de todos os indivíduos e tem um papel decisivo em todas as sociedades. De tal modo importante que é habitualmente tema de debate no quadro das agendas políticas dos governos, das empresas do setor privado e da sociedade civil em geral. Nos anos mais recentes inúmeras iniciativas foram produzidas visando firmar e divulgar muitos dos aspetos atrás referidos. No entanto, será que a sociedade portuguesa (na sua generalidade) reconhece verdadeiramente este valor do Desporto e percebe o seu potencial no quadro de uma estratégia de desenvolvimento humano sustentado?

Será que a sociedade portuguesa (na sua generalidade) reconhece verdadeiramente este valor do Desporto e percebe o seu potencial no quadro de uma estratégia de desenvolvimento humano sustentado?

Volto a este tema sem antes pedir escusa por já antes o ter tratado, embora com outros contornos. Sem dúvida um sinal de velhice esta minha tendência para a repetição. Neste caso, porém, foi mesmo intencional porque me obriguei a mais este “tratamento” atendendo à barafunda inqualificável que por aí grassa com “toupeiras, emails, confrontos físicos” e um mundo de outras trapalhadas (não só no futebol, mas também noutras modalidades desportivas) que parece não ter um fim à vista. Tentarei olhar para este assunto como quem faz uma viagem pelos caminhos dos velhos mestres – um outro sinal de velhice, ou tão só uma inevitabilidade de quem necessita de ajuda para “carregar a sua cruz”.

Avancemos então!

Para muitos treinadores e professores de Educação Física, uma das tarefas mais complexas da profissão tem a ver com o processo de ensino dos jogos desportivos a crianças e jovens inexperientes. Pessoalmente tendo a concordar com esta posição atendendo à complexidade e às singularidades de um processo que visa desenvolver o jovem atleta e promover a evolução da qualidade do jogo, ou seja, nada mais nada menos que resolver aquilo que os grandes mestres do treino designam – e muito bem – a transformação do “Jogo Anárquico” dos principiantes num jogo mais evoluído e qualificado, um modo de “saber jogar” que incorpora um leque de competências mínimas sem as quais o jovem praticante jamais entenderá a formalidade do jogo e conseguirá evoluir a caminho da excelência.

Foi à luz deste modelo que muitos treinadores e professores de Educação Física ajustaram a sua atuação no plano do treino e do ensino dos jogos desportivos e se distinguiram na sua missão de educadores. Foi com esta perspetiva pedagógica em mente que analisando e ultrapassando os problemas de iniciação aos jogos desportivos e, numa perspética de carreira, todos eles refinaram na prática o processo do verdadeiro combate desportivo, moldando jogadores e construindo equipas.

Porém, à medida que foram solidificando este processo e melhorando na arte de ensinar, foram também compreendendo de um modo mais flagrante as gigantescas desigualdades físicas, motoras, psicológicas, sociais e comportamentais existentes entre os jovens praticantes, apesar de todos eles “serem feitos da mesma massa”. Uma aula de EF ou uma sessão de treino (em qualquer modalidade desportiva e em qualquer escalão competitivo) é um momento singular para se compreender na perfeição a velha divisa: “todos iguais mas todos diferentes”. De facto, nada melhor que esta oportunidade de liberdade que o treinar/jogar permite para se apreciar as características particulares e únicas dos jovens desportistas, marcos distintivos que permitem discernir entre o atleta talentoso ou o praticante esforçado, comprometido, mas limitado. É pois neste ambiente diversificado e único que se moldam os jovens atletas e se procura antecipar o futuro das equipas de sucesso. Mas é também neste ambiente – que deve ser de liberdade, responsabilidade e criatividade – onde os professores/treinadores se devem comprometer com um modelo de trabalho/treino/preparação desportiva inclusivo, que não exclua mas integre, que não elimine nem rejeite mas aponte a importância do trabalho coletivo, independentemente da diversidade das qualidades e das aptidões dos indivíduos. De resto, este modelo não poderá descorar o propósito central da formação desportiva que é o seguinte: não há desporto sem competição! E assim sendo, é necessário lembrar a TODOS a importância de saber honrar os dois lados da contenda apesar de no final só haver lugar para um vencedor.

Mas é também neste ambiente – que deve ser de liberdade, responsabilidade e criatividade – onde os professores/treinadores se devem comprometer com um modelo de trabalho/treino/preparação desportiva inclusivo, que não exclua mas integre, que não elimine nem rejeite mas aponte a importância do trabalho coletivo, independentemente da diversidade das qualidades e das aptidões dos indivíduos.

Aprofundar este caminho é tão necessário no processo de formação desportiva como na consolidação da carreira desportiva ao mais alto nível competitivo. Phil Jackson, um dos nomes maiores do basquetebol mundial (campeão da NBA duas vezes como jogador, seis vezes como treinador dos Chicago Bulls – aí dirigiu atletas como Michael Jordan, Scottie Pippen, Toni Kukoc e Dennis Rodman – e cinco vezes como treinador dos LA Lakers – aqui liderou Kobe Bryant, Shaquille O’Neal, Derek Fisher e Pau Gasol) falava de um modelo no qual um jogador dá tudo de si no que respeita ao confronto/ao jogo/à batalha, mas jamais por efeito do ódio ao seu oponente. Gosto particularmente de lembrar uma outra imagem utilizada por este grande treinador que numa visão muito ampla da competição desafiava os seus atletas a considerar os adversários no jogo, na competição, como parceiros de um bailado que deveriam querer dançar juntos. E concluía lembrando que em desporto o adversário está na base da competição e não deve ser tido como um inimigo a aniquilar. Uma nota à margem para recomendar a leitura de dois livros particulares deste grande treinador: (i) Sacred Hoops – Spiritual Lessons of a Hardwood Warrior (1995)  e (ii) Eleven Rings: The Soul of Success (2013)

E concluía lembrando que em desporto o adversário está na base da competição e não deve ser tido como um inimigo a aniquilar.

Acredito que não há um único jogador, um único treinador, um verdadeiro desportista que discorde das posições que atrás explanei. De resto, muitos outros exemplos poderiam ser apresentados para divulgar a importância vital da prática desportiva no processo educativo, na organização social e no benefício individual das pessoas de todas as idades e culturas. Apesar de tudo, o Desporto é e será sempre o reflexo da nossa sociedade e, por isso mesmo, inclui excessos que bem conhecemos: agressividade dos atletas, abuso de drogas, falsear resultados.

No entanto, assistimos hoje e cada vez com mais regularidade a “outros confrontos desportivos” de uma ferocidade extrema protagonizados não tanto por atletas ou por treinadores e equipas técnicas no campo de jogo, mas mais intensamente por espectadores e adeptos, por dirigentes desportivos, comentadores e jornalistas que negam tudo aquilo que o desporto deve ser. Estes “novos confrontos” são a afirmação desmedida da irresponsabilidade, da falta de caracter, do desrespeito pelas regras do jogo e da conduta humana; são o exemplo acabado da inversão dos valores do Jogo e do Desporto e de uma vontade estúpida de aniquilar (de uma forma definitiva) o adversário.

É que parece ser cada vez mais atraente o vandalismo das claques e dos adeptos, a agressividade gratuita das palavras de um comentador/jornalista.

Curiosa esta “singularidade do Desporto Moderno”. Em todo o caso, uma singularidade perigosa. É que parece ser cada vez mais atraente o vandalismo das claques e dos adeptos, a agressividade gratuita das palavras de um comentador/jornalista na defesa das irregularidades desportivas ou os golpes sujos e as trapalhices administrativas dos responsáveis eleitos em contraponto com o respeito pelo outro, o fair-play, o comentário capaz de louvar/enaltecer a sabedoria do grupo para encontrar o ponto fraco do adversário e vencê-lo! Deixou de haver interesse pela arte da finta e do remate, pela beleza da defesa em voo ou do golo, pela excelência do lançamento…..!

Pessoalmente compartilho as posições do Papa Francisco quando afirma que fazer desporto é uma oportunidade para crescer na fraternidade. Não duvido que o desporto é uma escola de virtudes e motivo de alegria para todos os que o praticam e o seguem pelo mundo inteiro. Espero no entanto que através das parcerias possíveis e necessárias se combatam as paixões desmedias, se evitem os confrontos feios e o recurso “à força bruta” tão em voga nos nossos dias. Temo, por este andar, que a coisa ainda possa dar pró torto!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.