As novas heresias velhas

O cristianismo vive de reflexão, mas não se resume nem a doutrinas, nem a teorias; vive de gestos, mas não se resume nem a esforço, nem a formalismo. Quando se esquece disto, o cristianismo fica menor.

Na sua mais recente Exortação Apostólica, Gaudete et exsultate, sobre o chamamento à santidade no mundo actual, o Papa Francisco chama a atenção para “duas falsificações da santidade que poderiam extraviar-nos: o gnosticismo e o pelagianismo”. Como esclarece de imediato, “são duas heresias que surgiram nos primeiros séculos do Cristianismo, mas continuam a ser de alarmante actualidade” (Gaudete et exsultate, 35).

Segundo o Santo Padre, “o gnosticismo supõe ‘uma fé fechada no subjectivismo, onde apenas interessa uma determinada experiência ou uma série de raciocínios e conhecimentos que supostamente confortam e iluminam, mas, em última instância, a pessoa fica enclausurada na imanência da sua própria razão ou dos seus sentimentos (Idem, 36). Se o gnosticismo antigo foi combatido com energia pelos primeiros padres da Igreja, que se tiveram que opor com firmeza a todas as tentativas de interpretar o Evangelho à luz das filosofias então vigentes, o moderno também supõe um propósito de conciliação com outras ideologias, desde científicas como filosóficas e teológicas. Poder-se-ia dizer, de forma muito resumida, que o gnosticismo é principalmente uma perversão da fé, que se fecha na “imanência da sua própria razão”, à margem de Cristo, da Igreja e do povo (Idem, 36 e 37).

Por sua vez, o pelagianismo actual afirma que “não é o conhecimento que nos torna melhores ou santos, mas a vida que levamos” (Idem, 47). Neste caso, o centro da gravidade religiosa já não está na razão, como no gnosticismo, mas na vontade, que seria a potência mais directamente implicada com a vivência da fé, reduzida a uma praxis virtuosa.

Como sempre acontece, há algo de verdade e de falso em cada heresia. Se, por um lado, os gnósticos erram ao reduzirem a fé cristã a um mero conhecimento, ignorando que o conhecimento do bem, mesmo excelente, não nos faz necessariamente bons, reconhecem contudo que a razão humana não é despicienda em relação à salvação, porque a graça não destrói a natureza, nem a fé se opõe à razão. Com efeito, a graça sobrenatural sublima e eleva a natureza ferida pelo pecado e a fé, que excede a capacidade própria da razão, não só não a contradiz como até a ela recorre para o aprofundamento dos seus mistérios.

Os pelagianos, por seu lado, acertam quando reconhecem que a santificação do ser humano não se produz como consequência de uma profissão meramente intelectual de um determinado credo, mas pela prática das boas obras, pela vivência efectiva dos valores próprios da fé. Ignoram, contudo, que os actos que justificam o pecador são as obras da fé e, portanto, se esta sem obras está morta, as obras sem fé não têm transcendência sobrenatural.

Se o imanentismo gnóstico exclui o carácter sobrenatural da teologia católica, o voluntarismo pelagiano faz dispensável a acção da graça e até, em última instância, a própria mediação de Cristo. Nos dois casos, embora por vias diferentes, é sempre o homem que se salva a si próprio, quer pelo seu conhecimento, quer pela sua vontade.

De facto, não será exagerado afirmar que uma tendência contemporânea é precisamente a crença na auto-redenção, se é que ainda se reconhece que o ser humano carece de salvação. Ou seja, como se perdeu de vista o pressuposto do pecado original e pessoal e, portanto, a necessidade da justificação para alcançar a vida eterna, predomina no homem contemporâneo a suposição de que se basta a si mesmo, até para garantir uma feliz eternidade, caso admita a imortalidade da alma. De todos os modos, a recorrência a um hipotético salvador ou, pior ainda, a uma igreja que alegadamente o represente, resulta desnecessária para o homem moderno. Com efeito, não só não carece de redenção como, caso a necessitasse, dispensaria qualquer mediação para esse efeito, porque a sua razão e vontade seriam suficientes para lograr o que esse eventual redentor oferecesse, ou o que as religiões garantem aos seus fiéis seguidores.

Neste sentido, poder-se-ia dizer que os novos gnósticos e os novos pelagianos têm em comum a mesma pretensão de autossuficiência, que faz dispensável, e até criticável, o recurso a qualquer entidade salvífica, seja ela um messias ou uma instituição religiosa. A autorreferencialidade das suas respectivas imanências redunda num certo narcisismo espiritual, que automaticamente desvaloriza qualquer experiência ou vivência comunitária, porque os outros, mesmo os outros que pensam ou agem do mesmo modo, não são necessários, nem relevantes, para o próprio projecto existencial.

Desta atitude são reflexos muitos modos de dizer recorrentes entre os modernos, também cristãos. Quando se ouve alguém dizer que, para ele, determinada conduta não está mal, ou aquilo que a Igreja prescreve como obrigatório não é, para ele, necessário, está-se a supor, em última análise, que é o sujeito a regra da sua própria fé e, portanto, os mandamentos exteriores, sejam eles de Deus ou da autoridade eclesial, não podem ser determinantes para o seu próprio percurso espiritual. Ou seja, o bem seria apenas aquilo que eu faço porque quero fazer; como mal seria tão só o contrário do que eu, na minha liberdade criadora, entendo que deveria fazer, mas nenhuma destas categorias seria susceptível de ser determinada objectivamente por uma suposta regra de fé, nem imposta por uma qualquer autoridade eclesial. Não é de estranhar, portanto, que entre os católicos gnósticos e pelagianos abundem os ditos ‘não-praticantes’, que o não são precisamente porque entendem que a prática da sua fé não passa necessariamente por acções culturais comunitárias.

Poder-se-ia questionar: a que fica então reduzida a fé em Cristo para quem professa este relativismo subjectivista? Se é o próprio sujeito que determina o que está bem e o que está mal, o que deve fazer e o que deve evitar, para que serve a Igreja? E os sacramentos, que utilidade têm?

Também nisto os novos hereges são muito dignos representantes dos seus velhos antecessores, pelos que estas novas heresias são verdadeiramente velhas. Com efeito, os gnósticos não prescindiam dos Evangelhos, embora substituíssem os canónicos pelos apócrifos, elaborados à medida das suas conveniências ideológicas, como também agora se escrevem ‘vidas’ de Cristo de acordo com tudo o que hoje se entende politicamente correcto. Já para os primeiros pelagianos, Jesus de Nazaré era uma referência, mas não porque causasse a salvação daqueles que nele acreditavam e o seguiam, mas porque a sua vida era inspiradora do que que qualquer cristão deve ser. Não se reconhecia a acção da graça santificante, nem se afirmava a absoluta necessidade de um salvador, mas agradecia-se o bom exemplo de Jesus Cristo e reconhecia-se na Igreja uma entidade que favorecia o caminho de aperfeiçoamento espiritual que, contudo, seria irremediavelmente pessoal, porque só dependeria do próprio. Assim sendo, a graça de Deus não actuaria ao nível ontológico, como também os sacramentos teriam apenas um efeito simbólico: seriam apenas sinais que ajudariam o homem na sua auto-consciência e estimulariam o seu progresso espiritual, mas não o santificariam ex opere operato, nem a sua ausência impediria, absolutamente, a santificação do crente.

Tanto o gnosticismo moderno como o novo pelagianismo estão imbuídos de uma mentalidade neoliberal que, por certo, também contamina a versão contemporânea de ideologias totalitárias. Entre cristãos, mas também em militantes da extrema-esquerda originariamente marxista, é muito frequente o argumento da absoluta liberdade individual e, portanto, da ilegitimidade de qualquer medida contrária à autodeterminação do sujeito, porque contrária à sua liberdade. Chega-se até ao cúmulo de se permitir o que é contrário à dignidade do ser humano, em nome dessa concepção ilimitada da liberdade. Por exemplo: se um sujeito quer deixar de viver, ninguém se deve opor a esse seu desejo, porque a liberdade do indivíduo vale mais do que a sua vida e, em última análise, uma vida que não fosse inteiramente livre não seria digna, isto é, digna de ser vivida.

Na realidade, esse individualismo, tanto na sua versão gnóstica como pelagiana, não só contradiz a natureza comunitária da Igreja como também a sociabilidade que é própria do ser humano. Não em vão o homem, embora seja o ser vivo mais perfeito do planeta, é também o mais carente: qualquer animal consegue por si próprio alcançar o seu pleno desenvolvimento, mas o ser humano precisa absolutamente de interagir com outros seres da sua mesma condição para ser ele próprio, embora só em Deus, de quem é imagem e semelhança, possa alcançar a plenitude da perfeição.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.