“Stor, desculpe, não consigo acompanhar o ritmo dos meus colegas. Acho que não vou conseguir entregar o trabalho a tempo”, confessou-me, por estes dias, um aluno no final de uma aula de criação publicitária. Por mais estranho que pareça, é uma daquelas frases que gosto de ouvir dos meus alunos. Revela que a relação entre mim e eles é marcada pela transparência, pela confiança e pela compreensão. Por vezes, gostaria de responder como os meus pais me faziam muitas vezes, tirando da algibeira um desses velhos ditados populares. “Devagar se vai ao longe, depressa e bem há pouco quem”. Mas trata-se de toda uma gramática relacional que pouco diz aos alunos de hoje, marcados pela síndrome do pensamento acelerado, pelo hic et nunc e pelo ritmo desenfreado e algoritmicamente previsível das conexões digitais. Precisamos de uma nova linguagem para os fazer saborear o prazer da lentidão.
Este tipo de desabafo, mais frequente do que se pensa, tem as suas variantes no seio familiar e no meio laboral e já não é um simples sintoma de uma sociedade hiper-acelerada, é a linguagem pela qual se regem hoje as relações humanas, rápidas, fugazes, lights, modernas, portanto. E apesar de os meus alunos não estarem familiarizados com a terminologia do tempo acelerado nem com autores como Paul Virilio, Zygmunt Bauman, Simone Weil ou Gilles Lipovetsky, a sua relação com o tempo é atravessada por sentimentos de tensão, de pressão, de cansaço, de tédio, de confusão, de exaustão e de desenraizamento.
O ensino profissional é pautado por um certo ritmo de mercado já que uma das suas funções é integrar, precisamente, os jovens no mercado de trabalho. Algumas escolas começam já a adotar as últimas modas de gestão de empresas e só o fazem com tanta naturalidade porque o nosso modo de viver está estruturado numa escala de valores de mercado. Entre nós, a literatura académica tem potenciado este novo modelo de aprendizagem da escola-empresa, do aluno-cliente, do ensino-emprego, do professor-burocrata, da cultura-negócio e outros tantos elucidativos binómios. É uma ideia a que as crianças e os adolescentes até ao final do 3.º ciclo ainda não se aculturaram, mas que a partir do 10.º ano até ao final de uma licenciatura, ou mesmo depois de os alunos entrarem no mercado de trabalho, vai penetrando, criando um clima de desconfiança e descrédito na utilidade do ensino e da escola. No ensino profissional, o sentimento generalizado dos alunos é que só as disciplinas técnicas tem valor no seu processo de preparação para o mercado de trabalho, tudo o resto é inútil e perda de tempo.
Num ensaio manifesto do professor de literatura italiana Nuccio Ordine: A utilidade do inútil, depois de percorrer os mestres da inutilidade útil, Aristóteles, Montaigne, Gautier, Baudelaire, Ovídio, Kant, Bocaccio, Lorca, Cioran, John Henry Newman, uma boa lista de inúteis que não fizeram mexer o capital, afirma que “privilegiar exclusivamente a profissionalização dos alunos significa perder de vista a dimensão universal da função educativa do ensino. Nenhuma profissão poderá ser exercida de maneira consciente se as competências técnicas que ela requer não se subordinarem a uma formação cultural mais vasta, capaz de encorajar os discentes a cultivarem o espírito de forma autónoma e a darem livre curso à sua curiositas.” (2016:93). Mais do que uma escola que se mede pelos resultados quantitativos que produz, precisamos de escolas abertas à imaginação, aos sentimentos, aos afectos, à curiosidade, à reflexão, ao tédio e ao ócio, ao amor, à verdade e à sabedoria. E isso é possível no ensino profissional, por mais que pareça contraproducente estudar história ou literatura a quem vai trabalhar num novo unicórnio de Silicon Valley.
Naturalizamos a lógica do mercado como se se tratasse da mais bela árvore das patacas. No ensino, como nas empresas, não há tempo, porque é preciso dar resposta ao programa, às necessidades do mercado, a uma ideia dominante de educação. Como educar um aluno quando o ar que respiramos está infestado desta linguagem da velocidade, do despacha-te, do rápido, do útil?
Naturalizamos a lógica do mercado como se se tratasse da mais bela árvore das patacas. No ensino, como nas empresas, não há tempo, porque é preciso dar resposta ao programa, às necessidades do mercado, a uma ideia dominante de educação. Como educar um aluno quando o ar que respiramos está infestado desta linguagem da velocidade, do despacha-te, do rápido, do útil?
Não tenho soluções mágicas, mas acredito que a nossa forma de viver o tempo, o ritmo das nossas aulas, da apresentação e exemplificação de conceitos novos, a linguagem que utilizamos com os nossos alunos, ou simplesmente do tempo sem tempo que dispomos para cada aluno cria um espaço-tempo novo para eles, um espaço-tempo ritmado pela conversa pausada, pela escuta interrogante, pelo prazer de ir aprendendo sem intenção de acumular, mas de saborear.
É uma lição que os alunos, em especial, os que manuseiam diariamente equipamento ou programas informáticos vão descobrindo na transição do 10.º para o 11.º ano. Se no início a ânsia de saber tudo já e agora os leva por vezes a desistir, a dizer eu não consigo, com o tempo, os alunos compreendem que o saber leva tempo como um novo ser a desenvolver-se no ventre de uma mãe ou como as mais antigas sequoias do mundo. E que esse tempo precisa ser nutrido de forma consciente com aquilo que dá sabor à nossa existência e molda a nossa forma de ser, estar e agir.
Existe um velho provérbio sapiencial latino que exprime bem o ritmo que devíamos imprimir nos nossos alunos: festina lente (apressa-te lentamente). Escrever bem, saber analisar um poema, dominar a técnica de dupla exposição no Adobe Photoshop, levam tempo, porque o crucial na aprendizagem não é a conclusão da tarefa ou a entrega do trabalho, é como a experiência de aprendizagem ficou impressa na memória. Leva o teu tempo, bem que poderia ser a resposta do professor perante um aluno que não consegue acompanhar o ritmo de trabalho dos colegas. Mas é uma má resposta, porque a maior parte das vezes não compreendemos o ritmo de trabalho do aluno, o próprio não compreende se o seu ritmo de estudo é funcional ou não do ponto de vista emocional e social. Sem percebermos qual é o tempo do aluno, o que o faz avançar, estagnar ou bloquear, estamos a repetir mais uma dessas fórmulas mágicas que pululam no pensamento corrente da educação.
E como acabou a história? O professor deixou que o aluno entregasse o trabalho mais tarde? Nem todas as justificações para entregar mais tarde um trabalho são válidas, mas depois de algum tempo a conversar com o aluno percebi que a dificuldade do aluno não tinha que ver com a complexidade do trabalho nem com o exercício de comparação com os colegas que o pudesse estar a bloquear, mas com o tempo emocional que estava a viver fruto de uma doença grave pelo que o pai estava a passar. Quando chegámos a esse ponto da conversa, o trabalho tinha passado para segundo plano. A entrega estava adiada, não para o aluno ter mais tempo para fazer o trabalho, mas para lhe dar tempo para estar com o pai sem pensar no trabalho.
*Artigo em memória do Padre José Maria Brito, sj.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.