Alargar para reconhecer um bem maior

Neste encontro/confronto connosco, com os outros e com as palavras do Papa, somos chamados a desinstalar-nos, a questionarmo-nos e a agirmos.

A ideia era simples e despretensiosa: juntar algumas pessoas e fazer a leitura partilhada de uma encíclica. A inspiração veio através de uma amiga que tinha feito, algum tempo antes, essa experiência com a Laudato Si. Estando a Fratelli Tutti já há vários meses parada numa estante de livros da minha casa à espera de ser lida, comecei seriamente a considerar essa possibilidade. Assim, reunimos um grupo de seis pessoas, de proveniências, idades e tradições cristãs distintas, e traçámos como objetivo a leitura mensal de um capítulo da encíclica Fratelli Tutti, seguida de um encontro, de duração máxima de 90 minutos, para partilhar a reflexão, a oração (se for o caso), as questões e inquietações, as descobertas e intuições que surgiram da leitura.

A experiência tem-se revelado, pessoalmente, um verdadeiro lugar de encontro, de caminho sinodal, de escuta e de diálogo. E tem confirmado a convicção de que estas encíclicas do Papa Francisco não são documentos para ler sozinho/a, ou para analisar de forma académica como se fosse um simples documento de trabalho. São sim verdadeiras cartas que o Papa nos endereça e que se destinam a serem lidas de forma comunitária, discutidas, interrogadas e mesmo criticadas. Cartas que foram escritas para serem dialogadas, rezadas e experienciadas.

É surpreendente como a leitura em grupo nos abre a tantas realidades, a tantas vivências, a tanta interioridade. Potencia o nosso coração e o nosso olhar, exercitando “a capacidade diária de alargar o [nosso] círculo” (FT 97). Seguindo a ideia inicial, a nossa partilha tem sido simples e despretensiosa, marcada pela honestidade, pela humildade, pela realidade concreta onde nos encontramos, pelo que sentimos. Uma leitura profundamente marcada pela atualidade política, social, económica, cultural que nos rodeia, quer perto, quer longe, integrando assim uma reflexão que é maior do que as nossas vidas. Como diz o Papa «é preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que trará benefícios a todos nós. Mas há que o fazer sem se evadir nem se desenraizar. É necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na história do próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está próximo, mas com uma perspetiva mais ampla. (…) Não é a esfera global que aniquila, nem a parte isolada que esteriliza» (FT145)

Estas encíclicas do Papa Francisco não são documentos para ler sozinho/a, ou para analisar de forma académica como se fosse um simples documento de trabalho. São sim verdadeiras cartas que o Papa nos endereça e que se destinam a serem lidas de forma comunitária, discutidas, interrogadas e mesmo criticadas.

Uma das maiores riquezas deste processo tem sido, também, a liberdade de pensamento e palavra que tem sido gerada. Não sendo um espaço institucional ou “organizado”, não havendo um compromisso de longa duração, não estando presos a objetivos pré-definidos, aos poucos vai-se abrindo um espaço comum onde é possível partilhar livremente, não só o que nos inquieta e frustra, mas também as inspirações e os sonhos que nos movem. Esta liberdade possibilita uma acutilância na partilha e nas palavras, que desafia mas não magoa, e que é temperada com um bom humor que nos aproxima de Deus e do seu amor. Neste encontro/confronto connosco, com os outros e com as palavras do Papa, somos chamados a desinstalar-nos, a questionarmo-nos e a agirmos. Como afirma Francisco: “Se esta afirmação – como seres humanos, somos irmãos e irmãs – não ficar pela abstração mas se tornar verdade encarnada e concreta, coloca-nos uma série de desafios que nos fazem mover, obrigam a assumir novas perspetivas e produzir novas reações.”( FT128)

Mais do que propor um modelo replicável, neste texto pretendi simplesmente partilhar uma experiência de fé, de leitura partilhada, de oração, e de igreja. A diversidade tem sido uma das grandes riquezas deste processo, e conversando com os “Fratelli” deste grupo refletíamos como seria bom alargar ainda mais a partilha da leitura a pessoas de outras confissões religiosas ou mesmo sem crença religiosa explicita.

Termino, resgatando uma passagem do Capítulo V intitulado “A política melhor”, que pode servir de inspiração para este tempo de Verão tantas vezes feito de balanços, decisões, transições e de novas perspetivas que se abrem na nossa mala de viagens: “Ao pensar no futuro, alguns dias as perguntas devem ser: «Para quê? Para onde estou realmente apontando?» Passados alguns anos, ao refletir sobre o próprio passado, a pergunta não será: «Quantos me aprovaram, quantos votaram em mim, quantos tiveram uma imagem positiva de mim?» As perguntas, talvez dolorosas, serão: «Quanto amor coloquei no meu trabalho? Em que fiz progredir o povo? Que marcas deixei na vida da sociedade? Que laços reais construí? Que forças positivas desencadeei? Quanta paz social semeei? Que produzi no lugar que me foi confiado?» (FT197)

Quando penso por vezes já na rentrée de setembro, anima-me pensar que ainda temos três capítulos pela frente para ler e que nos convidarão certamente a disfrutar da esperança e do humor que somos chamado a partilhar!

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.