Ainda há lugar para velhos?

Pretende-se tornar invisível o ocaso da vida... Na cidade como no campo, não faltam idosos sós e desprotegidos, sujeitos à violência física e psicológica de quem deles devia cuidar, à espera do fim!

No rol infindável de interrogações, medos e perplexidades que a Covid-19 trouxe ao tempo presente, emerge, ainda que de forma não declarada, a questão do lugar que deve, ou não, ser reservado aos velhos. As manifestações de pesar perante a sucessão de mortes de idosos, imputadas à pandemia, não significam o fim, nem sequer fazem esquecer, os dedos em riste apontados à cara de pessoas cujo corpo está debilitado pela idade, pelo trabalho e pelas consumições, muitas vezes consideradas apenas um estorvo, sem préstimo algum. Entretanto, a gente vai sendo entretida com relatórios, os mortos já cá não estão, as intrigas não podem esperar e o resto logo se vê!… E assim se aliviam as consciências!

Durante séculos, os velhos viveram o que se designa de velhice invisível. Na Europa rural, quando a agricultura era a principal fonte de subsistência da população, que fazia do amanho da terra o seu modo de vida, prevalecia o conceito de família alargada, em comunidades de pequena dimensão, mas com um forte sentido de pertença e com ligações vicinais muito sólidas, que eram levadas à prática sempre que a necessidade e o trabalho as convocavam.

No tempo em que os recursos da medicina escasseavam, quando ainda estava longe a revolução medicamentosa e faltava quase tudo, fosse na habitação ou na alimentação, a morte era uma presença constante e podia sobrevir a qualquer instante. Por isso, até era encarada com uma certa naturalidade, mas queria-se anunciada, pública e participada. Temia-se uma morte inesperada e solitária…

Normalmente, aqueles a quem a idade já tinha subtraído muitos anos à vida, não se entregavam ao descanso enquanto houvesse força física e anímica para trabalhar. Quando se esgotava a capacidade de se bastarem a si mesmos, havia a certeza de que no agregado familiar alguém tomaria conta deles, até porque, ainda no tempo de pujança, tinham acautelado a chegada da velhice, através de estratégias familiares e patrimoniais. Este último elemento era essencial: havia bens reservados para quem se dispusesse a cuidar do idoso!

Em Portugal, devido a diversos fatores, designadamente o atraso no processo de industrialização e a prevalência da ruralidade durante boa parte do século XX, a dimensão social do Estado só ganhou forma mais tardiamente em relação ao resto da Europa.

Com o advento da contemporaneidade, muito particularmente da revolução industrial, do crescimento urbano e do progresso nos transportes, houve importantes mudanças sociais, além das acontecidas noutras áreas. Muitos homens e mulheres abandonaram os campos, deixaram as famílias e rumaram às cidades, movidos pela esperança de conseguirem uma vida melhor. Todavia, as expetativas saíam muitas vezes frustradas e acabavam por se tornar meras máquinas produtivas, nas mãos de patrões sem escrúpulos, explorados sem dó nem piedade. Nestas circunstâncias, os braços fraquejavam mais depressa e a vida acabava mais cedo… E faltava o suporte familiar para amparar quem já não tinha serventia e tinha sido deixado ao abandono!

Os “novos velhos” das sociedades industriais já não tinham património para distribuir, dado que os magros salários apenas lhes permitiram sobreviver; já não podiam contar com as solidariedades vicinais; e a família alargada fora trocada pela família nuclear, com os filhos a partirem bem cedo em busca de sustento. Assim, na ausência de família e de recursos, a velhice adquire uma nova feição: a velhice visível. Os velhos, que antes eram um encargo familiar, que viviam de forma silenciosa e na condição de incógnitos, passaram a representar um problema social e a fazer parte da lista dos necessitadas de assistência.

Até ao surgimento do Estado Social, foi graças à iniciativa individual ou de instituições privadas que foram criados os primeiros asilos. O ingresso nas estruturas asilares significava, da parte dos idosos, o corte com a sociedade e implicava a assunção de uma nova identidade. Entre os finais do século XIX e os inícios do século XX, os Estados começaram a assumir responsabilidades no setor social e a preocupar-se com os riscos a que as populações estavam expostas, incluindo as decorrentes do envelhecimento.

Em Portugal, devido a diversos fatores, designadamente o atraso no processo de industrialização e a prevalência da ruralidade durante boa parte do século XX, a dimensão social do Estado só ganhou forma mais tardiamente em relação ao resto da Europa. Os idosos continuaram nas suas casas, contando com o aconchego das famílias, vivendo uma velhice invisível. Os asilos eram para os desamparados e até nem eram bem vistos. Mas o país também mudou… Por exemplo, a mulher rompeu o confinamento no lar, abandonou a sua função de cuidadora, ganhou uma profissão, passou a fazer parte do mercado de trabalho. Entretanto, os asilos passaram a lares e mais tarde a estruturas residenciais para idosos… O país cresceu e desenvolveu-se, aumentou a esperança média de vida, os idosos são cada vez mais e vivem cada vez mais tempo. Os benefícios do Estado Social e do Serviço Nacional de Saúde deram um novo fôlego à chamada geração grisalha. No entanto, às vezes, parece não haver lugar para eles! Pretende-se tornar invisível o ocaso da vida… Na cidade como no campo, não faltam idosos sós e desprotegidos, sujeitos à violência física e psicológica de quem deles devia cuidar, à espera do fim!

As pandemias, ocorrências excecionais, têm a capacidade de provocar alterações comportamentais e mentais e de desencadear reações incomuns. A forma como os idosos vão sendo tratados neste contexto é disso exemplo.

O investimento nos apoios sociais, registado nas últimas décadas, é inegável e não deve ser desvalorizado. Há instituições, recursos humanos e materiais, formação de profissionais, se bem que em número ainda insuficiente. Todavia, numa sociedade onde abunda a instantaneidade e a frivolidade, parece não haver tempo para olhar para os velhos, nem para lhes dar tempo ou oportunidade para mostrarem que ainda valem alguma coisa; na era do individualismo e do produtivismo, os seniores vão sendo subtilmente excluídos por já não encaixarem em paradigmas instituídos.

As pandemias, ocorrências excecionais, têm a capacidade de provocar alterações comportamentais e mentais e de desencadear reações incomuns. A forma como os idosos vão sendo tratados neste contexto é disso exemplo. Veja-se: a dada altura, se a situação se agravasse, teriam que ceder os ventiladores aos mais jovens, como se o Homem se pudesse substituir a Deus na seleção de quem vive ou morre e o valor da vida dependesse dos anos já vividos; depois, promoveu-se a sua guetização, sem se questionar o seu bem-estar; e, por último, a forma como, a propósito dos óbitos, se refere que as vítimas pertenciam à faixa etária mais avançada e já padeciam doutros males…

Ora, se a nossa sociedade já tem uma morte anónima, não queira ter uma velhice invisível! Reflita-se e tente-se perceber se esta realidade não é mais um sintoma da dificuldade que mulheres e homens de hoje têm de enfrentar a ideia da sua efemeridade e da caminhada para o fim.

 

Fotografia de: eberhard grossgasteiger – Unsplash

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.