Sem menosprezar a coragem do Papa Francisco, bem como a do seu predecessor Bento XVI, na tomada de decisões concretas com vista à proteção de menores no seio da Igreja, devo dizer que compreendo quem se regozije hoje pelo fim da cristandade. Pois se é verdade que a Igreja é chamada a cooperar com a graça divina na conversão do mundo, constatamos hoje, e infelizmente, que talvez só tenha sido possível sentar padres e bispos no banco dos réus, como os demais mortais, a partir do fim de uma sociedade que era, para todos os efeitos, quase oficialmente cristã.
Refiro-me, evidentemente, à prática continuada de abusos em instituições sob a égide da Igreja católica onde a justiça muitas vezes não teve direito a se expressar. Quando palpitam no espaço público casos e mais casos de abusos, numa dimensão que parece não ter fim, é normal que se sinta, por um lado, compaixão pelas vítimas e, por outro, uma enorme repugnância face à hipocrisia dos abusadores. Perante a atualidade do tema, ecoam as severas palavras que Jesus dirige a quem “escandalizar um destes pequeninos que creem em mim (…) ai do homem mediante o qual vem o escândalo!” (cf. Mt 18, 6-7).
Ao escrever esta breve reflexão, penso sobretudo em três situações muito presentes no universo francófono onde me encontro atualmente: o recente documentário produzido por Arte, através do qual podemos assistir ao testemunho de ex-religiosas abusadas por clérigos; as várias formas de abuso perpetradas às irmãs da Communauté de Saint Jean; e, por fim, o filme Grâce à Dieu que trata do complexo caso Barbarin, cardeal e arcebispo de Lyon, hoje já condenado com pena suspensa, bem como das acusações de pedofilia dirigidas contra o padre Preynat, à data “presumidamente inocente” por o seu processo ainda estar em curso. Devemos notar que, apesar de já ter apresentado a sua demissão ao Soberano Pontífice, o cardeal em causa recorreu da decisão judicial. Talvez por isso o Papa tenha recusado a sua demissão.
O título do filme faz eco de uma declaração que o cardeal francês terá proferido a propósito dos presumíveis abusos perpetrados pelo dito sacerdote: “Graças a Deus, todos os casos prescreveram” (em francês:“Grâce à Dieu, tous ces faits sont prescrits”). O que o cardeal disse, mais exatamente, foi que “a maioria dos casos, graças a Deus, prescreveu” (“la majorité des faits, grâce à Dieu, sont prescrits”).
Para além de uma enorme insensibilidade para com as vítimas, tal declaração reflete um modo de compreender o que é a Igreja e uma forma de fazer uso do seu poder. Trata-se de uma cultura eclesial antiga, do mundo próprio à cristandade, onde à Igreja institucional lhe eram reconhecidos poder e privilégios particulares. E é por isso que podemos afirmar que os abusos não são, muito provavelmente, apenas de agora, desta Igreja moderna, pós-conciliar. Provavelmente, as várias formas de abuso, que hoje vêm a público, existem desde há muito tempo, apesar de só agora serem denunciadas pelas gerações que ainda são capazes de o fazer nesta terra.
Trata-se de uma cultura eclesial antiga, do mundo próprio à cristandade, onde à Igreja institucional lhe eram reconhecidos poder e privilégios particulares. E é por isso que podemos afirmar que os abusos não são, muito provavelmente, apenas de agora, desta Igreja moderna, pós-conciliar. Provavelmente, as várias formas de abuso, que hoje vêm a público, existem desde há muito tempo, apesar de só agora serem denunciadas pelas gerações que ainda são capazes de o fazer nesta terra.
Segundo a mentalidade clericalista, os membros do clero são os representantes por excelência da instituição. E é nessa qualidade que são defendidos a todo o custo, mesmo em detrimento dos direitos dos outros. A partir dessa mentalidade, torna-se possível soltar espontaneamente um ‘graças a Deus’ pela prescrição de um crime cometido por um padre. No seio dessa cultura clericalista, permite-se que um presbítero, cujos crimes já tenham eventualmente prescrito, continue a exercer o ministério sacerdotal. Quanto às vítimas, estas tornam-se numa espécie de cristãos de segunda classe, indignos de representar a Igreja. Mas, afinal, não somos todos “pedras vivas” do templo do Senhor (cf. 1 Pe 2, 5)? Foi ao ser lida como expressão dessa mentalidade que a frase proferida pelo cardeal Barbarin gerou tanta indignação. (Abro um parêntese para perguntar, neste contexto, se o anticlericalismo que reina em certos ambientes não será apenas, ou sobretudo, o outro lado da moeda desta cultura excessivamente clerical.)
Parece ser claro, pelo menos segundo o Papa Francisco, que o clericalismo constitui uma das principais componentes da crise que a Igreja hoje atravessa. Se o poder da Igreja só faz sentido enquanto for exercido como uma forma de serviço, então é preciso fomentar uma cultura eclesial onde não se conceba nem se promova uma classe de privilegiados, qual casta de intocáveis.
A forma como inúmeras autoridades eclesiásticas geriram os casos de abusos, transferindo o padre em questão para outro lugar, ocultando as situações de abusos, porventura mentindo e descurando o clamor das vítimas, é claramente, não só imoral, como também profundamente anti-evangélica. Pois um tal modo de atuação revela como a instituição eclesial se tornou, com o seu poder, numa sociedade à parte e fechada por um certo sectarismo ao mundo onde se encontra o comum dos mortais. De certa forma, essa Igreja abdicou de ser como o “fermento” (cf. Lc 13, 20-21) que transforma a partir de dentro através de um amor pobre e humilde, o amor que Jesus quer viver connosco. Atribuir privilégios a uma classe dentro da Igreja é não compreender a forma como Cristo, Aquele que se entregou na Cruz, usou do seu poder: “os reis dos pagãos os mantêm submissos (…) Vós não devereis ser assim; pelo contrário (…) quem manda seja como quem serve” (cf. Lc 22, 25-26).
Quanto às vítimas, estas tornam-se numa espécie de cristãos de segunda classe, indignos de representar a Igreja. Mas, afinal, não somos todos “pedras vivas” do templo do Senhor (cf. 1 Pe 2, 5)? Foi ao ser lida como expressão dessa mentalidade que a frase proferida pelo cardeal Barbarin gerou tanta indignação. (Abro um parêntese para perguntar, neste contexto, se o anticlericalismo que reina em certos ambientes não será apenas, ou sobretudo, o outro lado da moeda desta cultura excessivamente clerical.)
A vocação a um estado de vida na Igreja é um chamamento para participar e colaborar a este serviço, a esta vida de Cristo. Uma cultura excessivamente clericalista impede-nos de ser, enquanto Igreja, testemunha autêntica desta vida. Muito há a fazer, sem dúvida, para acabar com as formas negativas de clericalismo. Combater o clericalismo, a meu ver, não passa por tirar a casula na hora de celebrar missa, ou de ordenar mulheres ou homens casados. Se a Igreja enveredasse por essa via assumiria, aí sim, uma forma de clericalismo encapuçado e negativo. Não é preciso ordenar ninguém para lhe reconhecer igual dignidade enquanto batizado e membro da Igreja. Renunciar ao clericalismo passa, sobretudo, por combater a cultura de encobrimento, de proteção tribal de um grupo, fomentando, ao mesmo tempo, uma cultura de maior transparência. A partir dessa transparência, todos os batizados são chamados a testemunhar a vida de serviço à qual Deus os chama.
Apesar de existirem inúmeros exemplos de serviço e de santidade, normalmente esquecidos pelos media hodiernos, talvez certos membros do clero ainda vivam hoje de forma privilegiada, sustentados por estruturas que lhes permitem estar confortáveis e afastados do mundo real onde a maioria das pessoas deve esforçar-se muito para manter o seu emprego e sustentar o seu lar. São essas estruturas que podem contribuir para um uso abusivo de poder, alimentando o sentimento de impunidade de quem se julga membro de uma casta superior. Ver padres e bispos sentados no banco dos réus, civilmente julgados das acusações que lhes são dirigidas, ajuda-nos a descer à terra e a procurar ser o melhor cristão possível no estado de vida ao qual Deus nos destinou.
Surpreende a atualidade da distinção que Santo Agostinho estabeleceu entre a sociedade dos santos ou celeste e a sociedade puramente terrena. Estando misturadas ao longo da história, tanto no mundo em geral, como na Igreja em particular, as duas sociedades só se separam definitivamente no Juízo Final, quando já não há lugar para as prescrições da justiça humana. Compreendo que esta distinção possa suscitar indignação, sobretudo para aqueles que estão mais afastados da Igreja. De facto, nós não estamos no Juízo Final e a justiça grita de dor neste agora onde nos situamos. Jesus, por seu lado, depois de perguntar a Pedro se ele o ama, e depois de aceitar a sua resposta, confia-lhe a missão de “apascentar” as Suas “ovelhas” (cf. Jo 21). Leigos, padres ou freiras, somos todos essas ovelhas de uma Igreja que quer ser Corpo de Cristo. Com Paulo, sonhamos com uma Igreja onde “já não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher, pois somos todos um em Cristo Jesus” (cf. Gal 3, 28).
Por agora, além de sentirmos vergonha pela falta de credibilidade em que a Igreja parece ter caído, resta-nos tentar testemunhar o amor de Cristo da melhor forma possível, acolhendo, escutando e acompanhando as vítimas de forma a proporcionar todas as condições para que elas possam denunciar os abusos, mesmo apesar da dor que as imobiliza. Procuremos, com elas, purificar a Igreja de uma mentalidade clericalista, uma mentalidade que é capaz de fomentar as mais variadas formas de abuso.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.