Abel Varzim ontem e hoje - Ponto SJ

Abel Varzim ontem e hoje

Nos cem anos da ordenação do P. Abel Varzim, um testemunho pessoal da sua inspiração para o nosso tempo.

Tinha acabado de chegar de Moçambique quando o meu saudoso tio-avô Sidónio Paes me convidou para fazer parte do Fórum Abel Varzim. Aceitei, quase às cegas, confiado no seu entusiasmo maduro. Foram alguns anos de colaboração com o FAV, primeiro como  assistente curioso, depois como jovem membro da direção. Não fiz nada de especial nesses tempos: escrevi uns poucos textos para a “Transformar” – a revista do Fórum – e ajudei a organizar um ou outro evento. Procurei foi apreender alguma da sabedoria e da arte de dialogar de católicos mais seniores e militantes. E fiquei a conhecer alguma coisa sobre o padre Abel Varzim.

 

Abel Varzim 

Nascido em Cristelo, Barcelos, mesmo no início do século XX, cedo sentiu a vocação sacerdotal. Depois dos estudos em Braga, foi ordenado a 3 de julho de 1925 (dia do magnífico apóstolo São Tomé). Depois de uma missão de cinco anos como formador no seminário de Beja, rumou à Bélgica onde se doutorou em Ciências Sociais e Políticas, em Louvain. Ali conheceu e deixou-se influenciar por vários históricos do seu tempo, como Jacques Maritain (o grande filósofo católico do século passado) e o cardeal Cadjin, o maior impulsionador do compromisso social da Igreja.

Regressado a Portugal, em 1935, inicia uma multifacetada missão de docência e escrita, de política e promoção social. Foi professor durante mais de uma década no Instituto de Serviço Social e um dos fundadores da Ação Católica portuguesa e da Liga Operária Católica (LOC), às quais se dedicou intensamente durante treze anos.

Tintim 

Na Bélgica, Abel Varzim havia conhecido e privado com Hergé, conhecido autor de “Tintim”. Ficou-lhe o gosto por este personagem, cujas aventuras se mesclam com caricaturas e afrontas a várias ‘mentiras’ sociais. “Tintim” veio para Portugal pela mão de Abel Varzim, que foi mesmo o primeiro editor da coleção em língua portuguesa. A publicação de “Tintim” no nosso país era parte de uma “estratégia”, na altura ainda não declarada nem estruturada, de influenciar a opinião pública, de a fazer pensar criticamente em questões sociais, num tempo em que o regime começava a fechar portas e a cancelar ideias. Nesta senda, Abel Varzim virá a desenvolver uma intensíssima atividade literária e jornalística em múltiplas revistas e jornais do tempo. *

Política

Abel Varzim não acreditava na neutralidade social e política da Igreja. No meio da sua intensa atividade escrita e docente, surgiu-lhe o convite para entrar na política, o que na altura era permitido a membros do clero. Foi deputado à Assembleia Nacional na legislatura de 1938 e 1942. Não sei se Abel Varzim alinhava mais à esquerda ou à direita. Nem sei se essas categorias seriam propriamente as mesmas naquele tempo. A Igreja não é de esquerda nem de direita, mas os seus membros têm as suas preferências. Terá a ver com a história e contextos de cada um, ou talvez seja mais complexo que isso. Há tempos perguntavam a um conhecido bispo português se era de esquerda ou de direita: “Tenho dias!”, respondeu sabiamente.

É muito claro hoje que a política causa dissabores. As questões sociais defendidas por Abel Varzim não eram compreendidas pela direita do seu tempo, sempre em pânico com as (desgraçadas) ‘ideias’ que vinham do Leste. E as esquerdas daquela altura, ao verem em tudo uma luta de classes, não reconheciam essas questões sociais na forma genuinamente ‘desinteressada’ e ‘compassiva’ como as tratava o nosso padre. Quem não se encaixa nas categorias reinantes é normalmente mal entendido ou perseguido. Acabou por abandonar a política ativa no final da legislatura, depois de conhecer os caminhos equívocos da vida parlamentar. Encarou estes anos como um tempo de profunda aprendizagem e seguiu em frente.

Livro Procissão dos passos sobre uma mesa

A obra prima

“Procissão dos Passos – Uma vivência no Bairro Alto” é para mim a obra prima literária de Abel Varzim. Encantador livrinho que se lê num ápice. Merecia uma peça de teatro ou um filme. Tentei algumas demarches nesse sentido, sem sucesso. De que se trata?

Da sua história autobiográfica de pároco que chega, na força da idade, à paróquia de Encarnação. Corria o ano de 1948. Chega à igreja do Chiado com todo o seu vigor moral, aperfeiçoado pelos estudos e pela escrita. Chega com a experiência da docência e empenho nas áreas sociais. Chega acrisolado pela luta parlamentar e por vários despiques com autoridades.

Logo nos primeiros dias como pároco, Abel Varzim começa a fazer exorcismos desde o cimo da igreja para a zona do Bairro Alto, ao tempo o grande lugar de prostituição em Lisboa. Cresce a sua indignação com aquela realidade hedionda. Até que um dia, vê entrar na igreja uma jovem prostituta. Derreada e cambaleante, a rapariga, que não teria mais de vinte anos, dirige-se ao altar dedicado a Santa Maria Goretti (ainda lá está: o primeiro do lado direito de quem entra), e ali cai de joelhos. O livro conta a comovente história da ‘conversão’ de Abel Varzim a esta realidade, muito mais complexa do que imaginava. Deixa de ajuizar tanto e passa a agir mais. Apoia, não a prostituição em si (que continua a ser hedionda), mas as mulheres que se prostituíam porque haviam caído nessa ratoeira subtil e ardilosa, e dela não conseguiam sair. Quase todas raparigas novas e ingénuas que tinham vindo da “terrinha” procurar a sorte na grande cidade. Com pouca formação e menos recursos, eram facilmente abusadas e manipuladas. Depois, desnorteadas e sozinhas, deixavam-se ir naquela vida alienada e inebriante que lhes garantia a sobrevivência. Abel Varzim começa a conhecer as histórias das que vêm à Igreja, a horas improváveis, como a Samaritana. Um dia pedem-lhe para ir a um quarto na Rua da Rosa dar os últimos sacramentos a uma delas, que ali jaz, moribunda. Primeiro hesita (‘o que irão pensar?’), mas acaba por ir. Descreve esse dia como uma epifania. Com o tempo e vários apoios, consegue que várias dessas mulheres saiam da “má vida”, encontrando-lhes um trabalho digno e patrocinando alguns casamentos. Para as ajudar, inicia, com algumas senhoras distintas da paróquia, a associação “Obra das raparigas”. Mais tarde, esta obra constituirá a conhecida associação “O Ninho”.

Vale mesmo muito a pena ler o livro** e, talvez um dia, ver o filme ou a peça de teatro desta bela história…

Hoje

O que nos pode dizer Abel Varzim hoje?

A sua vida multifacetada tem já o seu quê de fascinante e poliédrico. Porém, vários anacronismos podem relegar a sua história para um passado muito situado. Após alguma reflexão, cheguei a cinco possíveis pontos relevantes para nós hoje:

– A importância de nos formarmos bem, de procurarmos os mestres do tempo, como fez Abel Varzim. Fazemos hoje licenciaturas e mestrados, mas será que queremos mesmo aprender e crescer a sério com os melhores mestres? Ou é só cumprir currículo e ganhar um canudo? As vozes do tempo, que aprofundam as “correntes” da vida hodierna, talvez sejam ressonâncias históricas ou updates do Espírito Santo, que importa escutar e seguir.

– Não ter medo da política ativa, essa “alta forma de caridade”, como nos dizia o Papa Francisco. Nos anos 40 do século passado, os padres entravam na política parlamentar. Depois do Concílio, essa ‘pasta’ passou, timidamente, para os leigos. Os riscos são grandes, como sabemos, mas quem tem esta vocação deve assumi-la como missão. Pode ser só uma legislatura…como fez Abel Varzim.

– A importância da escrita, de escrever o que se pensa, e partilhar onde for possível, sem medo. Muitos procuram fazê-lo, de quando em vez, mas talvez ainda longe da intensidade e verdade com que fez o padre Abel Varzim.

– A docência como lugar de profecia, sobretudo para as gerações mais novas. A educação e o ensino são hoje um campo de missão difícil, mas necessário. Abel Varzim foi professor muitos anos. Precisamos de mais professores, em número (que faltam!) e em ‘espírito’: esses “professores profetas” s(er)ão os melhores influencers das novas gerações!

– As questões sociais latentes (adaptadas em cada tempo e lugar) como temas difíceis dos quais é preciso falar e neles agir mais. Trabalhar em organizações de índole social (onde os salários são incompreensivelmente baixos!) ou fazer parte de associações ou fóruns que refletem e propõem pistas sobre temas sociais relevantes, é preciso e necessário. Não vale uma religiosidade que se fique só no registo intimista, numa interioridade solipsista e fechada. É preciso transbordar mais a vida abundante que Jesus nos dá. É preciso intervir e agir, com uma postura aberta, disposta a mudar e a crescer, como fez…

 

* Na revista “Lúmen” e na Rádio Renascença (revista e rádio); nos jornais “Novidades”, “O Trabalhador”, “Jornal de Notícias”, “Comércio do Porto”, “Correio do Minho”, “Jornal de Barcelos” e no “Boletim da Ação Católica Portuguesa”.

** O livro pode encontrar-se aqui: https://www.paulus.pt/products/9789729008221

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.