A proximidade segundo Josep Maria Esquirol

A propósito da obra "A Resistência Íntima. Ensaio de uma Filosofia da Proximidade".

Houve um tempo em que a filosofia não concebia ideias abstratas nem sistemas teóricos que pouco têm que ver com a vida concreta de cada dia. Havia então uma Verdade irredutível à razão gélida dos números e dos factos objetivos. Assim como o médico cura o corpo, o filósofo devia ajudar a cuidar a alma. É assim que Josep Maria Esquirol concebe a sua “Filosofia da Proximidade”: como uma cura para as nossas vidas.

Ao proclamar a morte de Deus, o grito de Nietzsche manifesta-se como uma reação legítima contra todo e qualquer exercício filosófico que cristaliza a essência das nossas vidas num conceito universal, abstrato, puramente racional. Ao sentir a sua própria vida aniquilada, Nietzsche procurou destruir, bem ao seu jeito das marteladas, os sistemas que construíram e mantinham os valores que, no fundo, a nada correspondem e aos quais a sua vida deveria conformar-se: o ‘Sumo Bem’, a ‘Razão’, a ‘História’, a ‘Verdade’, e até mesmo ‘Deus’, tudo em maiúsculas próprias de um Absoluto. “Ao «a verdade vos fará livres» sucede [portanto] «o querer far-nos-á livres»”. Mas, ao fazê-lo, acabamos por dar lugar a um outro niilismo: o de ter “a sensação de que nada tem valor” (p. 27).

Ao proclamar a morte de Deus, o grito de Nietzsche manifesta-se como uma reação legítima contra todo e qualquer exercício filosófico que cristaliza a essência das nossas vidas num conceito universal, abstrato, puramente racional.

Esquirol sabe que as metafísicas do passado serão incapazes de tocar o coração de quem vive o presente do nosso mundo. É por isso que nos fala de uma “metafísica pós-niilista” (p. 46), sem deixar de sublinhar que a sua “resposta ao niilismo” é “bastante diferente da nietzschiana” (p. 28). Com efeito, não são só as abstrações e as idealizações que paralisam a espontaneidade da vida que somos. O niilismo faz-se hoje de outras forças desagregadoras, tais como o consumismo, a ambição desmesurada, a competição, quiçá o sucesso heroico de quem conquista o mundo mesmo quando se isola até ao desespero. “Em lugar do eterno retorno”, Esquirol procura retornar a casa, “em vez da vontade de poder”, resistir, “em vez do super-homem, a proximidade” (p. 28). “O resistente resiste ao domínio e à vitória do egoísmo, à indiferença, ao império da atualidade e à cegueira do destino, (…) ao absurdo” (p. 20). Para Esquirol, resistência refere-se à procura de uma forma de vida autêntica que se afigure como uma alternativa ao estilo de vida, hoje em expansão, próprio do mundo tecnocrata e digital. Essa resistência será como a fortaleza das pessoas vulneráveis, que se realizam mesmo sem grandes feitos heroicos, sem controlar o mundo e sem prever o futuro. Trata-se de experimentar a proximidade como uma força que nos permite ser mais no ajuntamento ao outro.

“O materialismo do qual andamos falhos não é o teórico – contraditório nos seus termos –, mas o mais concreto, e por isso, o mais verdadeiro de todos”.

Amparar é o verbo que melhor traduz este aproximar-se, este fazer-se próximo onde crescemos em intimidade. Ao cuidarmos do outro num acolhimento recíproco, resistimos à tentação de o reduzir a um objeto totalmente compreendido pela racionalidade técnico-científica. Pois coisificamos as pessoas e as relações quando centramos o nosso modo de existência na posse, não contássemos nós para nada precisamente quando somos apenas um número “contado pelas estatísticas” (p. 99). É por isso que nos faz falta um “novo materialismo: o das mãos que pegam e tocam; o dos odores que sentimos e o das cores – fora dos ecrãs – que vemos. Quase equivalente ao esquema marxista: sem as mãos, as figuras da imaginação tornam-se tão abstratas que perdem o seu significado. O materialismo do qual andamos falhos não é o teórico – (…) contraditório nos seus termos –, mas o mais concreto, e por isso, o mais verdadeiro de todos. Se não o recuperarmos, então sim, a era digital será, mais que tudo, a era da evasão, o ópio renovado para o povo” (p. 61).

Amparar, cuidar, em vez de possuir, é caminho que não se faz sozinho. Se é com os outros que as coisas do dia-a-dia ganham sabor, se só com eles temos a experiência de sermos amados e assim escaparmos ao absurdo da existência, então não é verdade que a nossa liberdade termina assim que começa a dos outros. Realmente, a minha liberdade alarga-se juntamente com a dos outros, na medida em que o tédio, a falta de sentido, o absurdo da existência, só se vencem com gestos que nos aproximam uns dos outros.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.