A pele que há em nós

Sobre a pele que há em cada um de nós nada sei, o que é o mesmo que dizer que me escapa o que nos anima individualmente, porquê isto e não aquilo. Mas sei que a pele, minha, tua, nossa, se alimenta destes instantes transformadores.

“Sobre a pele que há em mim tu não sabes nada.” Assim canta Márcia numa bela canção, que tem este título.

Lembrei-me desta frase a propósito da experiência estética de um modo geral. Como? Tento explicar.

Recuo nas minhas memórias e vou até um dia em particular, algures em 1997, em que entro numa exposição de estampas japonesas do século XIX. Trata-se de uma exposição monográfica em torno do gravador japonês Hiroshige, mestre absoluto do desenho, autor de inúmeras estampas que captam o mundo flutuante, que é a tradução fidedigna da palavra ukiyo-e.

Hiroshige viveu na primeira metade do século XIX, em Edo, actual Tóquio. Urbano, cresceu num meio social entre os artesãos e os samurais e aos 15 anos recebeu o nome artístico Utagawa Hiroshige.  Contemporâneo de Hokusai, porventura mais célebre, dedicou-se sobretudo às paisagens e representações da natureza, com uma grande sensibilidade poética. A neve, a chuva, a bruma, o luar, impregnam as suas imagens de um lirismo invulgar.

Hiroshige soube captar a essência das estações do ano e das vistas mais marcantes do país – e de Edo em particular – em desenhos que foram posteriormente gravados em madeira.
Cada estampa é colorida em sucessivas vezes, graças a diversos blocos de madeira que são coloridos com pigmentos e estampados num pedaço de papel.

O facto de serem facilmente reproduzíveis fez com que se tornassem muito populares e acessíveis. As estampas mais famosas podiam ascender a 30 mil reproduções, numa época em que Edo tinha cerca de milhão e meio de habitantes.

As estampas de Hokusai e Hiroshige, entre outros mestres japoneses, chegaram ao Ocidente, e podemos afirmar que uma verdadeira vaga nipónica varreu a pintura europeia. Camille Pissarro, numa carta datada de 1893, afirmou que Hiroshige era um “maravilhoso impressionista”; Van Gogh fez cópias idênticas de estampas de Hiroshige; James Whistler, assumidamente influenciado por estas imagens, pintou uma ponte londrina ao estilo japonês.

Dizia eu que visitava esta exposição quando fui tomada de assalto por uma sensação que poucas vezes vivi de novo. A sensação pode ser descrita como uma euforia interna, intensa e fulgurante. O tempo como que fica suspenso e esta agitação interior tem tanto de físico como de psíquico. Recordo-me de ter passado horas em contemplação do azul, da composição, das figuras que atravessam caminhos, atenta às linhas, às cores, aos temas, ao ponto de vista usado, com ou sem perspectiva. Uma vontade de saciar uma fome inesperada, uma curiosidade em compreender o porquê deste deslumbramento.

A estética, como disciplina, tenta explicar este fenómeno que tive o privilégio de viver. Usa-se o termo sublime, cuja etimologia nos remete para um olhar de baixo para cima, uma elevação, um alargar da mente para uma sensação de grandeza.

Em anos posteriores vi e revi estas estampas tanto em papel, impressas no livro que então comprei, ou no ecrã, já que há um site que tem este acervo disponível on-line. Nunca, mas nunca senti de novo o mesmo arrebatamento que me desassossegou naquela exposição.

E este é o desafio da época em que vivemos, uma época dominada por ecrãs à distância de um polegar, ecrãs que permitem a reprodução de quase tudo. Podemos ver imagens, concertos, espectáculos. Mas há algo que nos escapa neste consumo bidimensional, mediado por um ecrã.

E aqui entra a pele que há em nós. A pele que vibra com a presença, mas pouco com a reprodução. Quando falo de presença, refiro-me à presença física que resulta de uma acção – a de nos deslocarmos aos locais onde as coisas acontecem – as exposições, as salas de espectáculos, os concertos. Só estando face a face sentimos a energia que emana das imagens, das pessoas, da música. E essa energia é tangível e nada tem de esotérico – é a intenção que se manifesta na forma como a voz é entoada ou o instrumento é tocado, é a garra com que o traço foi desenhado ou está no cuidado da escolha daquele pigmento em particular.

Sobre a pele que há em cada um de nós nada sei, o que é o mesmo que dizer que me escapa o que nos anima individualmente, porquê isto e não aquilo. Mas sei que a pele, minha, tua, nossa, se alimenta destes instantes transformadores. A Primavera aproxima-se – que o clima permita deixarmos a nossa pele mais permeável.

 

Andrea Lupi escreve de acordo com a grafia anterior ao presente acordo ortográfico.

* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.