Ciclicamente é anunciada no espaço público «uma nova agenda» dos temas e questões que num futuro próximo deve ocupar a humanidade. Esse tipo de exercício pode sofrer de um enviesamento disciplinar, ideológico ou de interesses particulares, ou ser estimulante e revestir-se de um interesse geral para a reflexão da comunidade, sendo que o equilíbrio e as fronteiras entre uma coisa e outra nem sempre são claros ou fáceis de discernir.
Notável exemplo de um ensaio deste género é o livro Homo Deus: História Breve do Amanhã (Elsinore, 2017) do historiador israelita Yuval Noah Harari. Trata-se da sequela do livro do mesmo autor Sapiens: História Breve da Humanidade. Se a narração da «história do passado» nunca está isenta da perspetiva de quem a conta e se os factos e a forma como são relatados estão sempre sujeitos a escolhas, narrar a «história do futuro», ainda que seja o de «amanhã», estará sempre enquadrada por um maior grau de subjetividade. Ainda que não fuja a essa natureza, Harari prende-nos à leitura com um elegante equilíbrio entre o empolgamento da escrita e um impressivo desfilar de dados e exemplos multidisciplinares com que interpela o leitor.
O argumento central de Harari, e aquilo que aqui o traz, é o que tendo a humanidade vencido, ou pelo menos criado e desenvolvido as condições técnicas e económicas para vencer a fome, as epidemias e as guerras, uma nova agenda, enquadrada pelo progresso tecnológico, está a substituir aqueles que por milhares de anos foram os grandes desideratos da humanidade. Assim, a luta contra a fome, as epidemias e a guerra, vai ser nos próximos tempos substituída pela procura da imortalidade e da felicidade, conduzindo, no limite, à aspiração da transformação do Homo sapiens num novo tipo humano, com características que ao longo da história foram atribuídas às divindades: um Homo deus.
Dito assim, tal soberba e blasfémia, choca-nos. Mas, os desafios e as interrogações que nos são colocados pelos dados e pelos exemplos com que Harari suporta o ensaio não podem deixar de nos interpelar. A melhoria nas condições de alimentação e higiene foram as grandes responsáveis pelo aumento da esperança média de vida. Hoje, em termos estatísticos, é mais elevado o risco de morte por doenças provocadas pela obesidade do que pela fome – «No início do século XXI, é mais provável alguém morrer por se empanturrar no McDonald’s do que por falta de água, devido ao Ébola ou num ataque da Al-Qaeda.» Por outro lado, a guerra deixou de ser encarada como algo normal e do dia-a-dia, para passar a ser encarada como um acontecimento extraordinário e inconcebível – «Em 2012, morreram cerca de 56 milhões de pessoas em todo o mundo. Destas, 620 mil pereceram devido à violência humana (a guerra matou 120 mil pessoas e a criminalidade matou 500 mil). Em contraste, 800 mil cometeram suicídio e 1,5 milhões morreram de diabetes. Hoje, o açúcar é mais perigoso do que a pólvora.»
O autor sabe que a afirmação de que a humanidade conseguiu controlar ou até mesmo vencer a fome, as epidemias e a guerra pode parecer insensível ou ofensiva face aos dramas humanos que sabemos que subsistem e a todos aqueles que continuam a morrer pela falta de condições de subsistência e vítimas de guerras, em muitos lugares da Terra, como em grande parte do continente africano e em situações verdadeiramente inconcebíveis, como a guerra que persiste no território da Síria. Mas considera que, apesar de estes problemas não terem sido completamente resolvidos, deixaram de ser situações fora da compreensão e do controlo humano para passarem a ser algo que o homem dispõe dos meios para solucionar.
No limite, a consequência é que o humanismo pode ser vítima da sua evolução e do seu próprio sucesso. A nova agenda que podemos ter pela frente, enquadrada pelo desenvolvimento tecnológico, levanta um sem-número de desafios. Imaginemos um futuro próximo em que a ciência vai retardando consecutivamente o envelhecimento e eliminando, uma após outra, as causas de morte por doença, numa busca incessante pelo prolongamento da vida, pela imortalidade (?!) ou, pelo menos pela «amortalidade». Imaginemos um futuro próximo em que todas atividades, profissões, que envolvam a análise de quaisquer dados ou informações serão desempenhadas por computadores, por algoritmos, desde um diagnóstico médico até à preparação da defesa de processo jurídico. Imaginemos um futuro próximo em que as decisões quotidianas, empresariais ou políticas estarão dependentes de um conjunto de cálculos que estão para além da inteligência (e da consciência?) humana.
Quando mergulhamos no conjunto de exemplos dos caminhos que hoje já estão a ser trilhados pela investigação em áreas como a biotecnologia e a inteligência artificial, pela omnipresença das redes sociais e dos smartphones na monitorização do nosso quotidiano e pela acumulação de dados, as fronteiras entre um progresso estimulante e benéfico do conhecimento humano e tenebrosas distopias tecnológicas e sociais podem ser ténues.
Felizmente, a história não é determinista. Mas só poderemos atuar sobre as escolhas que temos perante nós se tivermos essa consciência. E se as causas das transformações anunciadas são eminentemente tecnológicas, a ética e a política não se poderão demitir de cumprir o seu papel numa sociedade que se quer humana e humanista, no seu sentido mais caridoso. Se as pessoas (cada pessoa) não são números, também não são, não podem ser, dados. O tratamento estatístico da realidade é uma ferramenta útil e poderosa que nos permite organizar as atividades e distribuir os recursos de formas mais eficientes. Mas, um objetivo maior não se pode vergar à frieza da estatística – «Todas as famílias felizes são parecidas, mas as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira». A humanidade não é uma organização, uma empresa, com uma agenda e propósitos únicos, que possa medir o seu sucesso por um saldo positivo entre o deve e o haver, nem muito menos as suas imparidades podem ser limpas de um balanço comum.
Por outro lado, as possibilidades com que hoje nos deparamos podem aumentar as desigualdades, quer por via do acesso às soluções biotecnológicas, quer pelas mudanças no mercado de trabalho e na distribuição de rendimentos. Que desafios se colocam no campo da ética e da política se um pequeno grupo no topo da pirâmide social puder prolongar a vida (e a dos seus descendentes) incessantemente? De que forma a biotecnologia pode alterar ou pôr em causa os laços familiares? E se a grande maioria das pessoas forem dispensáveis do mercado de trabalho? Que consequência terá na acumulação e na distribuição de rendimentos?
Tudo isto são cenários, não são profecias, nem tão-pouco desejos. O progresso científico é talvez a maior realização humana e não deve ser demonizado. Mas, à medida que as possibilidades que a ciência nos oferece são cada vez maiores, mais exigentes são os desafios que se colocam à ética e à política. Não vai ser fácil responder nem dar as respostas mais adequadas às questões que estes desafios colocam. Mas, a ética e a política não se poderão demitir das suas responsabilidades.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.