Há alguns dias, num Ciclo de Cinema, visualizei o filme Graças a Deus (François Ozon, 2018). A trama enfatiza a dor das vítimas de abusos sexuais por parte de um padre, mas também a longa e voluntária cegueira da hierarquia eclesiástica em assumir e denunciar esses crimes.
O título do filme, Graças a Deus, é sintomático. Quando perguntaram ao cardeal Philippe Barbarin, em França, sobre o facto de um padre se ter livrado de uma punição pelos abusos sexuais que cometeu, o cardeal respondeu: Graças a Deus que a maioria dos factos está prescrita! Como se esta última, prevista pela justiça civil, correspondesse também a uma absolvição da Igreja e, portanto, isentasse a Igreja, enquanto instituição, de tomar decisões para deter e punir a ação do padre. Posteriormente, o cineasta François Ozon, de forma provocante, mas séria, usou esta expressão como título do seu filme.
De facto, os abusos sexuais no seio da Igreja Católica são um tema omnipresente, ainda que a tal verdade nem sempre tenha correspondido a franca disponibilidade para assumir que se cometaram erros e, mais grave ainda, se tenham encoberto crimes, que causaram terrores e horrores a crianças, sem nunca se ter manifestado o desejo de pedir perdão às vítimas.
Estando cientes desses atos criminosos, não houve uma prevenção ativa para detê-los, e, não raras vezes, se protegeram os abusadores, ocultando os casos de abuso sexual, recusando-se a escutar situações devastadoras que viviam as vítimas. Os abusos sexuais são uma agressão ao próprio Cristo, ou já nos esquecemos do mandato do Mestre: sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos pequeninos, a mim mesmo o fizestes (Mc 25,40). Como foi possível não acreditar naqueles que tiveram a coragem, tanto sofrida como libertadora, de nos alertar?
A Igreja não foi, em determinados tempos e espaços, perita em humanidade (Paulo VI Populorum Progressio, nº13), porque, diante destes crimes, se refugiou em atitudes defensivas, acreditando que seria possível esquecer os comportamentos ocorridos no passado, sem que os culpados fossem identificados, processados ou punidos pelos danos que causaram no desenvolvimento das crianças e jovens.
Nós, como comunidade eclesial, não soubemos estar onde deveríamos estar: negligenciamos e abandonamos, não atuamos a tempo no sentido de reconhecer a dimensão e a gravidade de tão hediondos crimes que estavam a ser causados a tantas vidas.
É imperativo que nós, como Igreja, possamos reconhecer e condenar, com dor e vergonha, as atrocidades cometidas por aqueles a quem estava confiada a missão de cuidar. Nós, como comunidade eclesial, não soubemos estar onde deveríamos estar: negligenciamos e abandonamos, não atuamos a tempo no sentido de reconhecer a dimensão e a gravidade de tão hediondos crimes que estavam a ser causados a tantas vidas.
Não é fácil encarar esta realidade. Sim, é um baque. Mas, hoje, a nossa missão é a de assumir, sem nos desviarmos, que esta é, infelizmente, a nossa realidade. Na verdade, se não a enfrentarmos, como o estamos a fazer, jamais avançaremos. A tentação mais cómoda é endurecer os posicionamentos, dizendo: Estou farto que a Igreja esteja sempre sob ataque; Por qual motivo vamos remexer nesse lamaçal, se isso prejudica a Igreja?; ou, pior ainda, A Igreja não é pior do que as outras instituições, olhem para o mundo do desporto ou da educação.
Os abusos sexuais não são exclusivos da Igreja Católica, mas o que poderá ser pior que um abuso pela parte de um padre que foi ordenado para anunciar a bela e felicitante notícia do Amor de Deus? Portanto, a Igreja tem a obrigação de informar e de ser transparente perante a sociedade. Hoje, encobrir o pecado é quase tão grave quanto cometê-lo.
No umbral de 2022, no intuito de identificar abusos praticados por membros da Igreja Católica ou nas suas instituições, entre 1950 e 2022, a Conferência Episcopal Portuguesa instituiu, com total autonomia, uma Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, coordenada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, que agradeceu à Conferência Episcopal Portuguesa este exemplo ímpar de abertura e reconhecimento da existência no seu seio deste drama dos abusos sexuais de crianças e a necessidade de a todos sensibilizar para este problema que é tanto da Igreja como da própria sociedade civil.
A criação desta Comissão Independente é o marco iniciático – para a Igreja em Portugal – de um processo que quer conhecer o passado e abraçar o futuro, ocupando-se e preocupando-se com crianças e adolescentes com vida ainda suspensa, a viver uma dor aprisionada com medo, vergonha e culpa porque foram vítimas de abusos sexuais e da horrorosa cumplicidade da Igreja silenciosa.
A Igreja tardou em aplicar medidas e sanções necessárias. Em 2019, Francisco ordenou que as dioceses criassem sistemas estáveis e facilmente acessíveis ao público, para apresentar as denúncias, instituindo, deste modo, a obrigação de denúncia aos membros do clero e institutos religiosos, sempre que alguém saiba ou tenha fundados motivos para supor que foi praticado um abuso sexual.
Recentemente, concretamente no dia 10 de maio, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, a referida Comissão Independente organizou uma jornada de formação, intitulada de Abuso sexual de crianças: conhecer o passado, cuidar do futuro. Nesse dia, o padre jesuíta Hans Zollner, membro da Comissão Pontifícia para a Tutela de Menores, foi contundente ao dizer que enquanto Igreja, temos de assumir que cometemos erros e que até encobrimos crimes, enquanto Igreja, acreditamos que a verdade nos liberta? E, de modo incisivo, afirmou a urgência da Igreja em admitir, enquanto instituição, que cometeu erros, bem como a implementação da tolerância zero e de modos de prestar contas por parte de todos aqueles que cometeram ou acobertaram esses crimes.
O escândalo dos abusos sexuais tem um efeito devastador na vida e no testemunho que somos chamados a dar nos lugares em que habitamos. Portanto, assumir os erros que a Igreja cometeu danifica a sua imagem, é certo, mas mais grave será continuar a perpetuar o discurso que nega a existência dos mesmos.
Na referida jornada de formação, Pedro Strecht, coordenador da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais Contra as Crianças na Igreja Católica Portuguesa, pediu que não se faça a ocultação da ocultação, ou seja, que nunca mais se promova uma cultura de encobrimento, de negligência e de omissão dos abusos sexuais.
Acredito que, no presente e no futuro, estas medidas ajudarão a garantir uma cultura do cuidado, procurando dar a todas as vítimas uma renovada esperança quanto ao seu próprio sentido de vida e uma integração psíquica de tudo quanto sofreram e que nunca, nunca, o tempo apagará e nada nem ninguém conseguirá reparar em definitivo.
* Os jesuítas em Portugal assumem a gestão editorial do Ponto SJ, mas os textos de opinião vinculam apenas os seus autores.